Marques da Silva
Estou num desses momentos inesquecíveis em que me deixas espreitar a beleza do mundo que se esconde no interior do teu olhar. Deslumbrado, ouço-te dizer que vivemos dias de festa, de harmonia, de paz, tempo de pensar ainda mais nos outros, sobretudo naqueles que amamos e que acabam por ser o nosso amparo na rudeza agressiva dos obstáculos que a vida sempre semeia pela mão da maldade humana. Sigo o teu conselho e procuro tudo o que de positivo pode ser lembrado. Mas, diz-me, já que em ti tudo é formosura, enternecimento, delicadeza, como posso viver em harmonia, valorizar a paz se quando fecho os olhos, me aparece, como um ferro a arder, a escaldar os sentimentos, a esmagar-me a vontade, o frágil e pequeno corpo de Alan Kurdi numa praia turca. Que serenidade nos mostra a foto, quantas lágrimas correram pela face da mulher que fotografava para que o mundo não pudesse descansar, não ter tempo de festejar, enquanto aquele pequenino corpo jazia com o rosto a ser beijado pelas águas do Egeu e as sua s débeis pernas sobre a areia, num último sono, enquanto do outro lado do Atlântico, Hillary Clinton, a incendiária da destruição da Síria, ria, em riso aberto, enquanto dizia num grande contentamento, «chegamos, vimos e ele morreu». Assim, referindo-se à Líbia que sepultada numa catástrofe, deixava de ser um Estado para ser a terra de todos os crimes. Hillary, pirómana inflamada, ria, feliz, abertamente satisfeita, da morte de Kadhafi e de Alan Kurdi, enquanto este regressava à terra Síria de Kobane para jazer para todo o sempre, enquanto me incinera de impotência a consciência por não ter agido contra um mundo que impediu que aquela pequena alma chegasse a ter sonhos. Suponho que Hillary continua hoje a rir perante a morte aos milhares das crianças iemenitas que as bombas americanas enterram nas areias da milenar terra de Saná, na fronteira do Mar Vermelho e do Índico. Morrem pelo fogo das bombas assassinas e da fome impiedosa desta guerra esquecida e ignorada. Abre os teus olhos, deixa-me entrar na profundidade desse teu olhar tão puro, onde a maldade não consegue lugar, para tentar apaziguar a alma dorida, tentar apagar todo este incêndio que perturba as minhas madrugadas sem sono e me aparece, cheio do gozo, do riso da Hillary, também pelos milhões de afegãos mortos para ao fim de dezassete anos o exército milionário do seu país erguido sobre os ombros de um imenso genocídio, vir dizer que não é possível vencer a guerra contra o exército de fanáticos esfarrapados. Entretanto, quem faz renascer os milhões de mortos semeados na terra afegã? E quando tento fugir das praias turcas, aparece-me a coragem da jovem Ahed Tamimi a desafiar o exército judeu, autor do holocausto palestiniano, essa monstruosidade que, com a nossa omissão e complacência, foi sendo erguida ao longo de setenta anos. Não há exemplo de um outro Estado cuja totalidade da sua história, seja feita de guerras, de crimes, de indignidades, de campos de concentração, do incumprimento de todas as resoluções das Nações Unidas. No meio da noite chegam-me os gritos de Maria Mharta Brea a jovem médica raptada pelo estrume do exército argentino, à luz do dia, no hospital onde exercia e desaparecer para todo o sempre. Só trinta e quatro depois, soubemos que resistiu sessenta dias às torturas nesse antro de bestialidade humana que foi a Escola Mecânica da Armada e enterrada numa vala comum. Sim, desejava viver num tempo de paz e harmonia, mas diz-me como fazê-lo se quando fecho os olhos à procura de sonhos, de infinitos, da ciência à pesquisa de estrelas, só me aparece aquela face direita do menino Alan Kurdi deitada sobre a areia daquela praia que a foto imortalizou, retirou o som e lhe dá um silêncio que não consigo ouvir? Porque é que dentro da minha alma nocturna não ouço os sinos de Tchaikovski a celebrar a vitória em Borodino, mas antes o Dies Irae de Mozart a fazer-me sentir culpado por viver num mundo assim e quando tento fugir, perseguem-me os sinos que dobram, que Hemingway perpetuou, que dobram pela humanidade e por mim?
O início é sempre o mais penoso. Sabemos tudo, mas a primeira palavra não chega. O tempo, talvez o tempo. Não o que passa por nós e nos arrasta, mas o outro, o que não controlamos e chega do céu. Veio com os seus pingos minúsculos, molhados, inserindo-se no corpo e na alma, varrendo de cinzento a luz. O grito das gaivotas explode nos ouvidos e à alma dorida, junta-se a do corpo com os seus batalhões de frio e prostração. E não vi o primeiro entardecer da Primavera, penetrando pela noite. À alma derrotada juntou-se o corpo vencido.
O primeiro-ministro português, no Natal, foi visitar as tropas portuguesas no…, Afeganistão. Que pátria, estarão ali a defender os soldados a quem pagamos? O exército alemão admite a possibilidade de contratar soldados de outros países por falta de voluntários alemães! Para já, são médicos polacos. Há uns anos atrás, chamavam-se mercenários. Agora devem ter outro nome. A democracia tem tantas vitalidades!
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