Marques da Silva
Conversamos sobre ela numa daquelas tardes em que as minhas palavras dialogavam com o teu silêncio, nesse tempo em que o meu amor por ti era ainda como a chama ardente do campo de marte, constante e eterna. Dizia-te então, do fascínio pelas cores vivas que apareciam nas suas pinturas, da dignidade que transpirava dos seus trabalhos, da sua vida e da sua coragem. Foi uma dessas mulheres que vêm para ficar na memória da humanidade e a inspiração criativa surge em altos-relevos nos seus quadros com o arco-íris ancestral do seu povo tão maltratado, tão explorado e violentado nos seus direitos. Viveu e amou com a intensidade luminosa que as suas mãos faziam nascer das tintas que misturava e saíam cheias de vida na viagem que o pincel que manejava percorria pela tela. Não precisou de ser digna, ela era a própria dignidade. Amou e desamou o homem que a cativou e seduziu, talvez com o gesto, ou com a palavra, quiçá com o sonho que estava então tão vivo na esperança de todos aqueles que perseguiam o futuro. Quando pensávamos que nada mais haveria para descobrir de tudo o que nos deixou, renasce pela fotografia, as que fez, criou e amputou. Nelas encontramos o seu país, com os seus autóctones tão esquecidos e silenciados, ela própria em toda a sua plenitude, nessa beleza esplêndida que vem da segurança que colocou no seu viver, na sua alegria e tristeza, no sofrimento, tanto da sua dor física como da que morava na sua alma, mas também no êxtase de poder viver como desejou. Está ali quase tudo a preto e branco, as cores que subtraíram a luz natural do mundo, mas que engradeceram o que colavam no papel após a cópia que se obtém da natureza. Entrei nas salas forradas pelas pedras seculares da antiga cadeia e expandi a observação pelas paredes, mas nem tudo parecia claro, algo ofuscava as imagens que procurava e só quando alcancei a frase que dizia, «para que preciso de pernas se tenho asas para voar»(1), compreendi que me tendo habituado a ver o mundo através da limpidez do teu olhar, tudo fica obscuro e bloqueado com a tua ausência. Recorri então à utopia do sonho, recuperei o teu olhar puro onde ardiam as chamas amantes da minha alma e obtive a nitidez das fotografias que se expunham e lá aparecia a clareza da vida e do amor, a presença desse amor que foi e regressou, que deixou lastro, deixou água revolta na sua passagem. Olhamos e penetramos com intensidade nos seus retratos nos momentos da sua vida que ali aparecem visíveis, projectados, vivos muito para além da presença física da sua autora. Embrenhado na vivência que ia recriando para meu consolo, perdi-me na saída, fiquei vagabundeando entre uma parede e outra, com rumo indefinido como quando o teu olhar me deixou nesse dia em que os cometas perderam a orientação e caíram de uma só vez no rio do esquecimento. Ficou sempre uma luz latente, ao fundo, umas vezes longe, outras nem tanto, e assim encontrei o corredor de saída para a praça que se abre sem limites, enquanto lá dentro, as fotografias, continuam a falar da vida, da felicidade de viver, da beleza e da arte, símbolos tão preciosos de uma existência interior plena, entre o sonho e a realidade.
(1) – Frida Kahlo, as suas fotografias, em exposição no Centro Português de Fotografia, Largo Amor de Perdição, Porto
Quando a ausência dramatizou tudo em volta, decidi esquecer e guardar o passado na arca do tempo onde repousa tudo o que já não podemos viver. Mas as sombras escuras da noite enchem tudo de recordações como fantasmas vivos recriando as ruínas em construções esplendorosas. Levantava-me e percorria então as áleas de um jardim palaciano rodeadas de flores em botão com as cores divinas com que os teus olhos semearam a terra por onde passavas e das tuas mãos saíam os gestos que lhes frutificavam a raiz e as tornavam nos símbolos de beleza que me orientavam os dias. Mas o sonho terminava sempre quando nascia o brilho da alva que acende a vida. Os duendes que me guiavam entre as trevas da noite, adormeciam, os canteiros enchiam-se de ervas esquecidas e bravias. Nascia o dia e eu morria.
O Estado de Israel decretou que os judeus são uma raça pura, excluindo da sua cidadania todo aquele que não seja judeu, quer seja, árabe muçulmano ou árabe cristão, pouco importa. O regime nazi também decretara que os arianos eram a raça pura que importava preservar. Afinal a diferença entre os carrascos e as vítimas era pequena, dependia só de quem exerce o poder. Ontem, os nazis, hoje os judeus. Das grandes democracias excelsas defensoras dos direitos humanos, sobre este assunto, apenas se ouve um silêncio tumular.
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