(Urqhart castle)
Inverness, 31 de Maio
A Foz do Ness é o nome desta cidade onde cheguei. Sim, este é o Ness que vem do lago onde alguns procuram afanosamente um monstro que não se deixa ver. É uma pena e uma perda de tempo procurá-lo quando os verdadeiros monstros são bem visíveis e infernizam-nos a vida real. Na verdade o Ness desagua num imenso estuário e só doze quilómetros além entra vagarosamente no Mar do Norte. Vim de Sul para Norte e atravessei as Altas Montanhas. É uma sucessão de lagos e fios de água. A neve ainda resistia no cume das cordilheiras que rodeiam o Lago Lochy. Em Fort Augustus abandonei a A82, por onde todos seguem. Rodeei o Ness pela margem direita através da B862. Voltei a subir as montanhas até ao Lago Tarff. A 500 mts de altura a paisagem é soberba. Os 35 kms do Ness ficam sob o nosso olhar. São momentos de paralisia, de reflexão. Sentimos a nossa pequenez perante a imensidão da paisagem. Num minuto apercebemo-nos do significado do verbo amar, a vida, as pessoas, os lugares. É quando nos deixam assim, na fronteira do inacreditável, do inenarrável, do que não pode ser fotografado, apenas vivido nesses instantes em que a roda do tempo se detém para nos podermos aperceber de quem somos, do que fazemos e para onde vamos. O tempo que perdemos em futilidades quando a vida é como a paisagem, só a podemos viver uma vez, porque muda a cada instante, pela luminosidade, a intensidade das cores, a temperatura ou a hora do dia. Baixei para Foyers para alcançar a margem do lago e poder olhar as ruínas de Urquhart Castle do lado oposto. As ruínas do que já foi grande. Num espaço cuidado, bem conservadas, deixam-nos a ideia de uma Escócia soberana, independente, uma nação com alma. Propositadamente quis vê-las à distância, como quem interroga o passado sem o perturbar. O meu caminho prosseguiu pela margem direita ao longo da B862. Foi neste percurso estreito, rodeado de verde entre árvores e arbustos que a memória me trouxe um tempo em que a música que escutava variava com as estradas que percorria. Não a escolhia nem a procurava, chegava com os espaços que atravessava. Não a trazia na memória, surgia do interior da alma. Quando viajava na N347 a caminho de Montemor nesse instante em que a quietude do fim de tarde visita o nosso cansaço por entre as árvores que marginam a estrada antes de alcançarmos os campos do Mondego, chegava-me a Elegia do José Afonso, “O vento desfolha a tarde/ como a dor desfolha o peito”; na N226 a caminho de Lamego quando a luz do dia nos anuncia a visita do crepúsculo, deixava-me embalar pela doçura das curvas e aparecia-me a Canção de Embalar, “Trovas e cantigas muito belas/ afina a garganta meu cantor/ quando a luz se apaga nas janelas/perde a estrela d’alva o seu fulgor”; porém quando o meu caminho era a N222, nesse traçado esplêndido entre a Régua e o Pinhão, surgiam-me os sons alegres de Maria Faia e era como se o automóvel adquirisse asas e planasse sobre a margem do Douro, “Eu não sei como te chamas ó Maria Faia/ nem que nome te hei-de eu pôr/ ó Maria Faia, ó Faia Maria”. Havia uma música que me chegava em qualquer estrada nesses momentos em que as escarpas da vida me traziam as maldades do mundo, a violência dos senhores, dos “mordomos do universo todo” e a alma explodia como uma galáxia em expansão ao som do Dies Irae do Mozart, como se me erguesse nas mãos de todos os deserdados num voo de justiça e furor como quem acredita serpossível humanizar a humanidade. Entrei no sul da Inglaterra pela Cornualha e ao caminhar pela B3301 ao admirar as ondas em vagas sucessivas de encontro ao sopé da falésia foi a vez de escutar Carmina Burana Ó Fortunanesses cinco minutos iniciais de autêntica fantasia que nos faz sentir marinheiros descobridores enfrentando adamastores. Ao lembrar-me de todos estes momentos interrogo-me porque razão naquele momento em que me aproximava de Inverness, no sossego de uma estrada bela e aprazível a música que escuto provinda da alma é a Balada de Outono, “Águas passadas do rio/meu sono vazio/não vão acordar/Águas das fontes calai/ó ribeiras chorai/ que eu não volto a cantar”. Para lá da cidade, no fim do estuário, há uma praia extensa ao longo de uma ínsua. Uma jovem passeia um cão que vai correndo no vai e vem das ondas. Ao longe um cargueiro rasga o horizonte, a sua grandeza diminuída pela distância. O resto é silêncio, o que vejo e sinto e o que a alma me traz nos sons que a criação de Beethoven fez chegar até aos nossos dias. É o silêncio que vejo a norte para onde se encaminha o meu destino.
Fernão Vasques*
Fernão Vasques*
* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.
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