Montaillou, 28 de Fevereiro
Levava como destino a cidade de Carcassone, as suas muralhas, o seu núcleo histórico, o seu passado, a vida humana da Occitânia, mas um encontro com Emmanuel Le Roy Ladurie, fez-me deter a caminhada nesta pequena aldeia das montanhas pirenaicas pousada num pequeno planalto a 1300 metros de altitude. Chove e neva e o frio abraça-se a mim com um desses apertos que parecem que nos vai estrangular o peito, ao mesmo tempo que a alma também se encerra ao pensar os seres humanos que aqui viveram no início do século XIV. Diz-nos o historiador que esta foi a última aldeia cátara que a Igreja católica extirpou das suas heresias. O catarismo nasceu no seio dos crentes cristãos e procurava a pureza face aos desvios da sua Igreja que, teria traído a doutrina dos apóstolos. Havia os puros e os crentes e esta versão do Deus cristão singrou, sobretudo no sul pirenaico da Occitânia que então era propriedade do Condado de Foix e não do rei de França. Não vou contar a história trágica e dramática desses dias do século XIII. Estávamos no tempo das cruzadas e elas existiam quer contra os muçulmanos quer contra os cristãos. Roma só admitia uma via de sentido único. Mas a Instituição sediada em Roma, há muito que não servia Deus, apenas se servia de Deus e qualquer desvio aos valores entendia-se na verdade como desvio aos fins. A Inquisição nasceu nestes dias, cruel, brutal, torturadora. Nos dias de hoje estaria sentada no banco dos réus de um Tribunal de Direitos Humanos. Simmon de Montfort com a sua brutalidade sangrenta destacou-se nesta orgia de violência sobre gente humanamente inocente. Morreu em 1218, mas o seu património crescera. O mesmo se passou com o Rei de França que aproveitou para anexar as terras do Languedoc. Para estes, Deus foi sempre grande. O pensamento pode ser aprisionado, mas morto não e a rebeldia herética teima em renascer e em 1308, os últimos resistentes vão às centenas para a purificação nas fogueiras medievais. Mas a história não tinha acabado. No planalto, na aldeia de Montaillou pareceu renascer novo foco. Assim o pensou Jacques Fournier, bispo de Pamiers. A Inquisição tinha residência em Carcassone e para ali eram levados os hereges, para as suas celas, os seus corredores malditos, as suas sessões de tortura. O Tribunal era dominicano, mas as Ordens Mendicantes, de uma forma geral não se pouparam na perseguição dos desviados do caminho eterno de Deus. Pela Occitânia passou também António, mais tarde santo, de Pádua ou de Lisboa tanto faz. Não se sabe por que locais andou, nem o que fez mas a sua visita existiu. Fournier um monge cisterciense, vai ser o personagem central do que a seguir vai cair sobre Montaillou. O seu percurso de vida no interior da Igreja católica de então era muito comum. Filho de camponeses, sobrinho de Arnaud Novel, abade do mosteiro cisterciense de Fontfroid, vai estudar e doutorar-se em Paris. Sucede ao tio antes de chegar a bispo em Pamiers. Antes de mais, impôs dízimos sobre a produção de produtos antes isentos. Em 1303 a Inquisição de Carcassone mandara prender todos os habitantes de Montaillou com mais de 12 anos. Com este acto tem início a imposição de todos os dízimos sobre o gado. Em 1323, Fournier impõe de todo, o seu cumprimento, alargando o seu âmbito. Com o corpo cuidado, o bispo de Pamiers vai dedicar-se ao estudo das almas. Em colaboração com o dominicano Jean de Beaune, responsável pela inquisição de Carcassone, vai criar o seu próprio tribunal, em estreita associação com outro dominicano, frei Gaillard de Pomiès. O bispo Jacques Fournier não é um torturador. Vai usar a persuasão, o medo, a delação. Pomiès vai ser seu assistente, vigário, lugar-tenente e aparece como uma figura sinistra. Montaillou tinha então pouco mais de duas centenas de almas. Eram camponeses, pastores, lenhadores. Uns eram cátaros, outros não. Ninguém se atropelava. Havia uma vida comunitária, sem ser em comum. A dureza do quotidiano não lhes permitia grandes margens para conflitos. Havia um castelão representante do conde de Foix. Dominavam a vida política e religiosa da aldeia, os irmãos Clergue. Pierre era o pároco, Bernard o bailio. Pierre Clergue vai oscilar entre o crente e a heresia. Cátaro quando lhe convém, cristão quando sentir o cheiro a carne queimada. Dirá um dia a uma das suas amantes, Béatrice de Planissoles, «- Não mudei, respondeu-me o abade. Continuo a gostar dos bons cristãos [os heréticos]. Mas quero vingar-me dos camponeses de Montaillou, que me fizeram mal, e vingar-me-ei de todas as maneiras possíveis. Depois, saberei entender-me com Deus». Não foi a tempo, contudo, pois Jacques Fournier sabia receber presentes, mas não mudava de atitude. O irmão, vai gastar uma fortuna, 14 mil soldos, junto dos maiores, mas não conseguirá tirar o abade das celas da inquisição de Carcassone, onde morrerá. Fournier, vai ser metódico, persuasivo, insistente, pondo a falar as suas vítimas. Uma delas, dirá do bispo que era hábil em fazer sair os cordeiros. O seu tribunal vai funcionar 370 dias entre 1318 a 1325, durante o qual foram feitos, 573 interrogatórios, ouvidos 418 arguidos e 160 testemunhas. A esmagadora maioria destas pessoas era gente humilde. Dos 98 processos elaborados, as condenações – 75 dos acusados eram residentes de Montaillou - resultaram em mais 5 seres humanos cuja vida acabou na fogueira. Os restantes foram parar à prisão, condenados ao uso de cruzes amarelas na roupa e os de maior gravidade no pecado da heresia, a duas cruzes pintadas. Houve confiscação de bens, destruição de casas. Jacques Founier raramente recorreu à tortura. Foi mestre em colocar as vítimas a falar, da sua vida, do seu dia-a-dia, o que fizeram, como fizeram, com quem estiveram, o que disseram. Todas estas palavras, recolheu-as o bispo num largo documento com vários volumes que viria a ser publicado em 1910 e permitiu a Emmanuel Le Roy Ladurie na sua, Montaillou cátaros e católicos numa aldeia occitana 1294-1324, reconstituir a vida desta aldeia, com os seus personagens, as suas vidas, os seus afazeres, as famílias, as propriedades, o que pensavam, o que semeavam, o que colhiam, como se alimentavam. Jacques Fournier, concluído o seu trabalho foi premiado com o bispado de Mirepoix e chegará mais tarde a ser papa em Avinhão como Bento XII. A aldeia da Montaillou medieval já não existe. Apenas restam os vestígios de onde existiram as casas e as paredes em ruínas do castelo. Foi reconstruída um pouco abaixo, mas hoje quase não tem habitantes. Nas noites frias que atravessamos, com as chamas crepitando na lareira queimando a madeira e não corpos humanos, vou lendo e analisando esta história desta pequena aldeia, esquecida no tempo e na memória. As fogueiras continuaram a queimar na Europa, e não só, por mais quatro séculos e ocorre-me essa pergunta tão natural, e Deus, onde estava Deus quando aqueles que dizem representá-lo nada tinham de misericordioso? Deus está, naturalmente onde sempre esteve, no pensamento da humanidade que necessita de fé, de acreditar, de uma utopia para caminhar. Afinal, todos nós. Uns procuram a utopia na Terra, outros encontram-na no céu. Em ambos os casos, aparecem sempre os que se elevam para falar e agirem nome de quem nunca lhes atribuiu mandato com as consequências que sabemos. Amanhã desço da montanha e vou por fim, visitar Carcassone.
Fernão Vasques*
* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.
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