StatCounter

View My Stats

01/03/17

116


O SILÊNCIO DE DEUS

Mário Martins



https://www.publico.pt/2017/01/17/culturaipsilon/noticia/os-sons-do-silencio-

“São questões que, por fim, nos atiram para o abismo do silêncio de Deus, essa espécie de ordálio por onde todos passam, crentes e não crentes, mártires e apóstatas, religiosos de todos os credos e ateus. O silêncio de Deus é o nosso património comum (…)” 

José Tolentino Mendonça 
(Revista do semanário Expresso, de 2017-01-21)


É sempre gratificante ler Tolentino Mendonça, mas confesso que tropecei nesta parte do seu artigo “A teologia do silêncio”, a propósito do filme de Scorsese “Silêncio”, sobre a vida e morte dos missionários jesuítas no Japão do séc. XVII.

Desde logoparece-me contraditório afirmar que o silêncio de Deus é o património comum de crentes e não crentes. Como é que o não crente em Deus, quer dizer no conceito da Sua existência, é atirado para o abismo do Seu silêncio?

E também não é óbvio que os religiosos de todos os credos padeçam do mesmo silêncio, já que as religiões orientais são radicalmente diferentes das religiões do Livro.

Tolentino Mendonça parece partir do princípio de que a existência de Deus está demonstrada e é universalmente aceite mas, como já escrevi nestas páginas, o que é universal (na medida em que é sentido por todos) é o mistério da existência ou da realidade. É esse mistério, a par da angústia do sofrimento e da morte, que explica, aliás, a força e a sobrevivência de religiões que, para além de inegáveis virtualidades, tão dolorosamente marcam a história humana.

Deus não é universal, é cultural. Não foi Deus que criou o Homem à sua imagem e semelhança, como doutrina a mitologia judaico-cristã, mas sim as diferentes culturas humanas que “criaram” Deus(es) à imagem e semelhança de um Homem idealizado, ou seja, isento do mal e da finitude. É precisamente porque a Natureza é imperfeita, no sentido em que o sofrimento está tão espalhado como oleite e o mel, que a humanidade imagina seres e mundos transcendentes e perfeitos.

Concorremainda, outras razões para justificar a “criação”humana de seres transcendentesSe na Natureza tudo tem uma causa, isso faz-nos recuar à causa primeira, que a física experimental sustenta que ocorreu há cerca de 14.000 milhões de anos. Ora se este é o tempo do Universo, manda a lógica que se retire que a primeira causa é sobrenatural. Mas a razão mais importante é a da inteligência. Se o processo de evolução natural produziu inteligência e se a maior inteligência que se conhece tem forma humana, segue-se que haja uma inteligência sobre-humana que justifique a existência daquela, das leis do Universo, do próprio Universo.

É possível, todavia, fazer uma abordagem diferente ao mistério da existência. Se é incontornável reconhecer uma inteligência sobre-humana, daqui não se segue que, obrigatoriamente, tenha a forma de seres. Pode ser tão abstracta como a forma matemática de que aparentemente se reveste, e imanente à Natureza. Segundo a física teórica é possível que exista uma quantidade infinita de universos ou seja, por outras palavras, que a Natureza seja eterna. Nesta abordagem, a Natureza autojustifica-se e dispensa Deus(es), mas é forçoso reconhecer que a razão da sua existência permanece fora do entendimento humano. É o silêncio da Mãe Natureza.


O NÍVEL DOS SOFISTAS

António Mesquita
         



"'O homem é a medida de todas as coisas'. Entenda-se, a necessidade humana, a ordem humana. Porque há verdades vantajosas; e o sage, instruído pela experiência, deve persuadir a multidão humana de que o que é vantajoso é verdadeiro. Assim, ele põe-se de acordo com Górgias e tantos outros para dar leis úteis aos homens e para refutar os descontentes, o que é a melhor política; porque assim eles adoram o cacete. Vê-se que o Pragmatismo não é jovem."
("Abrégés pour les aveugles", Alain)

O capítulo é dedicado aos Sofistas, dos quais Górgias é o mais famoso. Como a história e a experiência individual o demonstram, a verdade nem sempre traz vantagens; pelo contrário. Mas aqui estamos a falar de necessidades e de ordem, quer dizer, do nível mais básico de qualquer sociedade. Das condições sem as quais não há ideias nem espírito, nem talvez 'super-estrutura', quando muito, os sons guturais da selva que hoje os 'tweets' vêm ressuscitar. É por isso que o entendimento com o sofista, que tanto pretende provar uma coisa como o seu contrário, pode ser útil para 'fazer caminho' (lembremo-nos dos célebres 'compagnons de route'; Sarte foi um deles).

É sabido que o 'dinheiro',  que assume formas que parecem novas como os especuladores da finança, os fundos-abutres ou até os bilionários da tecnologia, não tem pátria, nem moral. Pois também ele pode ser 'sofista' à sua maneira, procurando 'salvar' a imagem que passa para 'eternidade'. A utilidade social dessa 'salvação' não pode ser negada. Os romanos tinham uma instituição chamada evergetismo que obrigava os ricos, em vida, a contribuir para a 'paz social', com grandes despesas públicas  e benefícios para a comunidade. Modernamente, o jovem poder tecnológico pratica o seu próprio evergetismo. Vejam os fundos e a filantropia, às vezes retorcida.

O pragmatismo 'tem barbas', portanto. Pode ser útil, como reconhece o filósofo. Mas existe nessa apreciação uma condescendência que nos alerta para os limites dessa maneira de pensar. É porque ao mundo pragmático, falta  o homem, ou o melhor do homem.

A pergunta que ocorre no 'tempo electrónico' que é cada vez mais o nosso, e que parece ter desactualizado e reduzido a 'bytes' as mais nobres aspirações e as mais reconfortantes utopias, é se vamos ou não perder, com a globalização e o terrorismo, o chamado 'comboio da história', porque em breve o melhor do homem terá sido uma oportunidade perdida, a não ser para as elites que vão saindo do palco, 'pela esquerda baixa'.

Passaremos do nível mais básico, o das forças desencadeadas, naturais e sociais; por um lado, a reacção do planeta ao aquecimento global e à poluição do ambiente e, por outro,  o capitalismo das oligarquias financeiras e tecnológicas ou o capitalismo de Estado travestido, ao estilo chinês,   para outro, 'admiravelmente' organizado, como na profecia de Aldous Huxley, mas onde o sentimento de justiça será uma coisa impensável.

COMISSÕES PARLAMENTARES DE INQUÉRITO

Mário Faria




Em meados de 2002, num debate que o jornal Público animou, num fórum aberto aos leitores, sobre as CPI (Comissões Parlamentares de Inquérito), numa altura em que o seu funcionamento estava a ser severamente posto em causa pela maioria PSD/CDS, ora pela inoportunidade dos tema sujeitos a inquérito, ora pelos métodos de trabalho, ora pela devassa do sigilo através de fugas de informação certeiras, ora pela irrelevância dos resultados. A esse propósito, escrevi na altura o seguinte: “Não se acaba com as CPI só porque as duas últimas comissões funcionaram mal. É preciso atentar que as dificuldades tendem a aumentar a crispação e a clivagem entre partidos. Não há que temer, já que ultrapassámos situações (crises) bem piores. A discussão e o conflito, quando democraticamente orientados e controlados, inspiram o desenvolvimento e contribuem no processo de consolidação das instituições. Não encontro nenhum motivo para decretar que as CPI não têm razão de existir. Bem pelo contrário, estou de acordo com as competências (… os inquéritos parlamentares têm por função vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os actos do Governo e da Administração …) e os poderes que lhes estão outorgadas por lei. E estou de acordo porque acho que um pequeno grupo de parlamentares tem melhores condições para pesquisar e aprofundar temas controversos e de grande relevância para a vida política e social e porque, sendo deputados, continuam a ser representes do povo a tratar dos acontecimentos e a decidir sobre eles ….. Acho que estas duas últimas CPI (“demissões na PJ) e “obras do metro”) correram muito mal porque interessava à maioria e, por isso, penso que acabar com as CPI constituiria, em linguagem futebolística, um claro benefício aos infractores …. Acabar com as CPI em nome da falta de credibilidade é que não. Espero que a maioria não caia na tentação de retirar essa “vantagem da minoria”.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. A rapaziada do PSD/CDS sobre a recapitalização da CGD já vai na segunda CPI, porque lhes foi impedida a leitura dos sms’s trocados entre Centeno e Domingues sobre as promessas feitas ao bancário pelo Governo e que o dispensaria da apresentação da declaração patrimonial ao TC. Não sei se o ministro das finanças mentiu, mas o Governo não se isenta da responsabilidade nas trapalhadas cometidas para satisfazer as exigências do tal António Domingues. A direita tem tido uma intervenção política de afrontamento sistemático, utilizando a mentira como sendo a prática política dominante do governo e de quem o sustenta. Aproveita-se ao máximo dessa arma de desgaste contínuo para o fragilizar assumindo-se, ao contrário senso, como o dono da verdade. Ultimamente, o PSD tem-se queixado de claustrofobia democrática. Nem respiram, coitados. Enquanto isso ocorre, a(s)esquerda(s) têm aberto brechas que os processos da TSU e da CGD escarrapacharam, porque em causa estavam as linhas vermelhas que cada um dos partidos não pode, não deve ou não quer ultrapassar. Se o governo conseguiu cumprir todos os objectivos a que se propôs e o Presidente o apoia, é óbvio que os constrangimentos são enormes e o governo tem de andar próximo da perfeição. Por isso, exige-se que os partidos que sustentam o governo devam dar cumprimento a uma participação activa na “nova” CPI. É difícil encontrar limites para este inquérito, quando os tribunais decidiram (na primeira e segunda instância) que a CGD tinha de fornecer todos os dados pedidos pela CPI. E há uma grande pressão, pública e publicada, a reclamar por essa informação. Também gostaria de saber quem são os malandros que encheram a banca de imparidades, mas deixo a pergunta: porque nunca foi exigido algo semelhante relativamente aos inquéritos ao BPN, BES e Banif? E é justo que a CGD, concorrendo com a banca privada, tenha obrigações que aos outros não é exigível? Insisto: pede-se à esquerda sabedoria e prudência. E força no gatilho quando for caso disso. Ao Governo que continue a trabalhar com rigor e sem arrogância.

CARTAS DE SANTA MARIA



(Montaillou )

Montaillou, 28 de Fevereiro


Levava como destino a cidade de Carcassone, as suas muralhas, o seu núcleo histórico, o seu passado, a vida humana da Occitânia, mas um encontro com Emmanuel Le Roy Ladurie, fez-me deter a caminhada nesta pequena aldeia das montanhas pirenaicas pousada num pequeno planalto a 1300 metros de altitude. Chove e neva e o frio abraça-se a mim com um desses apertos que parecem que nos vai estrangular o peito, ao mesmo tempo que a alma também se encerra ao pensar os seres humanos que aqui viveram no início do século XIV. Diz-nos o historiador que esta foi a última aldeia cátara que a Igreja católica extirpou das suas heresias. O catarismo nasceu no seio dos crentes cristãos e procurava a pureza face aos desvios da sua Igreja que, teria traído a doutrina dos apóstolos. Havia os puros e os crentes e esta versão do Deus cristão singrou, sobretudo no sul pirenaico da Occitânia que então era propriedade do Condado de Foix e não do rei de França. Não vou contar a história trágica e dramática desses dias do século XIII. Estávamos no tempo das cruzadas e elas existiam quer contra os muçulmanos quer contra os cristãos. Roma só admitia uma via de sentido único. Mas a Instituição sediada em Roma, há muito que não servia Deus, apenas se servia de Deus e qualquer desvio aos valores entendia-se na verdade como desvio aos fins. A Inquisição nasceu nestes dias, cruel, brutal, torturadora. Nos dias de hoje estaria sentada no banco dos réus de um Tribunal de Direitos Humanos. Simmon de Montfort com a sua brutalidade sangrenta destacou-se nesta orgia de violência sobre gente humanamente inocente. Morreu em 1218, mas o seu património crescera. O mesmo se passou com o Rei de França que aproveitou para anexar as terras do Languedoc. Para estes, Deus foi sempre grande. O pensamento pode ser aprisionado, mas morto não e a rebeldia herética teima em renascer e em 1308, os últimos resistentes vão às centenas para a purificação nas fogueiras medievais. Mas a história não tinha acabado. No planalto, na aldeia de Montaillou pareceu renascer novo foco. Assim o pensou Jacques Fournier, bispo de Pamiers. A Inquisição tinha residência em Carcassone e para ali eram levados os hereges, para as suas celas, os seus corredores malditos, as suas sessões de tortura. O Tribunal era dominicano, mas as Ordens Mendicantes, de uma forma geral não se pouparam na perseguição dos desviados do caminho eterno de Deus. Pela Occitânia passou também António, mais tarde santo, de Pádua ou de Lisboa tanto faz. Não se sabe por que locais andou, nem o que fez mas a sua visita existiu. Fournier um monge cisterciense, vai ser o personagem central do que a seguir vai cair sobre Montaillou. O seu percurso de vida no interior da Igreja católica de então era muito comum. Filho de camponeses, sobrinho de Arnaud Novel, abade do mosteiro cisterciense de Fontfroid, vai estudar e doutorar-se em Paris. Sucede ao tio antes de chegar a bispo em Pamiers. Antes de mais, impôs dízimos sobre a produção de produtos antes isentos. Em 1303 a Inquisição de Carcassone mandara prender todos os habitantes de Montaillou com mais de 12 anos. Com este acto tem início a imposição de todos os dízimos sobre o gado. Em 1323, Fournier impõe de todo, o seu cumprimento, alargando o seu âmbito. Com o corpo cuidado, o bispo de Pamiers vai dedicar-se ao estudo das almas. Em colaboração com o dominicano Jean de Beaune, responsável pela inquisição de Carcassone, vai criar o seu próprio tribunal, em estreita associação com outro dominicano, frei Gaillard de Pomiès. O bispo Jacques Fournier não é um torturador. Vai usar a persuasão, o medo, a delação. Pomiès vai ser seu assistente, vigário, lugar-tenente e aparece como uma figura sinistra. Montaillou tinha então pouco mais de duas centenas de almas. Eram camponeses, pastores, lenhadores. Uns eram cátaros, outros não. Ninguém se atropelava. Havia uma vida comunitária, sem ser em comum. A dureza do quotidiano não lhes permitia grandes margens para conflitos. Havia um castelão representante do conde de Foix. Dominavam a vida política e religiosa da aldeia, os irmãos Clergue. Pierre era o pároco, Bernard o bailio. Pierre Clergue vai oscilar entre o crente e a heresia. Cátaro quando lhe convém, cristão quando sentir o cheiro a carne queimada. Dirá um dia a uma das suas amantes, Béatrice de Planissoles, «- Não mudei, respondeu-me o abade. Continuo a gostar dos bons cristãos [os heréticos]. Mas quero vingar-me dos camponeses de Montaillou, que me fizeram mal, e vingar-me-ei de todas as maneiras possíveis. Depois, saberei entender-me com Deus». Não foi a tempo, contudo, pois Jacques Fournier sabia receber presentes, mas não mudava de atitude. O irmão, vai gastar uma fortuna, 14 mil soldos, junto dos maiores, mas não conseguirá tirar o abade das celas da inquisição de Carcassone, onde morrerá. Fournier, vai ser metódico, persuasivo, insistente, pondo a falar as suas vítimas. Uma delas, dirá do bispo que era hábil em fazer sair os cordeiros. O seu tribunal vai funcionar 370 dias entre 1318 a 1325, durante o qual foram feitos, 573 interrogatórios, ouvidos 418 arguidos e 160 testemunhas. A esmagadora maioria destas pessoas era gente humilde. Dos 98 processos elaborados, as condenações – 75 dos acusados eram residentes de Montaillou - resultaram em mais 5 seres humanos cuja vida acabou na fogueira. Os restantes foram parar à prisão, condenados ao uso de cruzes amarelas na roupa e os de maior gravidade no pecado da heresia, a duas cruzes pintadas. Houve confiscação de bens, destruição de casas. Jacques Founier raramente recorreu à tortura. Foi mestre em colocar as vítimas a falar, da sua vida, do seu dia-a-dia, o que fizeram, como fizeram, com quem estiveram, o que disseram. Todas estas palavras, recolheu-as o bispo num largo documento com vários volumes que viria a ser publicado em 1910 e permitiu a Emmanuel Le Roy Ladurie na sua, Montaillou cátaros e católicos numa aldeia occitana 1294-1324, reconstituir a vida desta aldeia, com os seus personagens, as suas vidas, os seus afazeres, as famílias, as propriedades, o que pensavam, o que semeavam, o que colhiam, como se alimentavam. Jacques Fournier, concluído o seu trabalho foi premiado com o bispado de Mirepoix e chegará mais tarde a ser papa em Avinhão como Bento XII. A aldeia da Montaillou medieval já não existe. Apenas restam os vestígios de onde existiram as casas e as paredes em ruínas do castelo. Foi reconstruída um pouco abaixo, mas hoje quase não tem habitantes. Nas noites frias que atravessamos, com as chamas crepitando na lareira queimando a madeira e não corpos humanos, vou lendo e analisando esta história desta pequena aldeia, esquecida no tempo e na memória. As fogueiras continuaram a queimar na Europa, e não só, por mais quatro séculos e ocorre-me essa pergunta tão natural, e Deus, onde estava Deus quando aqueles que dizem representá-lo nada tinham de misericordioso? Deus está, naturalmente onde sempre esteve, no pensamento da humanidade que necessita de fé, de acreditar, de uma utopia para caminhar. Afinal, todos nós. Uns procuram a utopia na Terra, outros encontram-na no céu. Em ambos os casos, aparecem sempre os que se elevam para falar e agirem nome de quem nunca lhes atribuiu mandato com as consequências que sabemos. Amanhã desço da montanha e vou por fim, visitar Carcassone.   

       Fernão Vasques*

* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.

View My Stats