(Alhambra) |
Granada, 31 de Dezembro
O nome da cidade e da província arrastam-me o pensamento para três momentos distintos. Antes de mais, o poeta, pelo que a primeira paragem teve de necessariamente ser em Fuente Vaqueros. O seu nome chegou-me quando a adolescência se despedia, na parte terminal dos anos de chumbo que a nossa pátria viveu. A memória já não guarda os pormenores com nitidez suficiente, mas numa dessas noites, encontramo-nos no TEP para ver a Casa de Bernarda Alva. Era muita a fadiga pelas canseiras que esses tempos geravam, pelo que o registo da obra e do autor ficaram pouco cinzelados. Mas não tardou que os Aqua Viva, trouxessem de novo até mim a palavra do poeta. Era uma canção luminosa que começava com uma voz dorida, El río Guadalquivir va entre naranjos y olivos. Los dos rios de Granada bajan de la nieve al trigo, para de seguida apresentar o poeta, Federico, Garcia Lorca, my cantor. Mais tarde, Pablo Neruda, haveria de trazer relatos da vida intelectual em Madrid, da qual Garcia Lorca era uma das figuras referenciais. Desgraçadamente, nessa época, um maltrapilho que vestia a farda do exército da Espanha republicana, um estropiado intelectual que dava pelo nome de Francisco Franco, revolta-se contra a República e o governo constitucional, permitindo que todo o jardim zoológico do fascismo se espalhasse pelo território do Estado dando largas à sua selvajaria. Foi o tempo em que um rufia a quem chamavam Millán-Astray, perante a grandeza intelectual de Miguel Unamuno, na venerável Universidade de Salamanca, gritava, “Abaixo a inteligência”, com os rafeiros que o acompanhavam fazendo coro com um “Viva la Muerte!”. Nas primeiras semanas da guerra, procuraram o poeta e o assassinaram entre naranjos y olivos. Nunca o disseram porquê. Um «equívoco da guerra», tentaram explicar mais tarde, quando as trombetas da História lhe começaram a bater nas bentas. Por isso, a canção prosseguia, «apresento um amigo que não conheci, porque o meu princípio foi depois do fim». Federico voltou, mais tarde com o seu olhar cheio da luz da sua Andaluzia e agora pode passear sem medo pela Vega, por entre os laranjais e pelas ruas da sua aldeia. Enquanto percorro essas ruas, a memória, procura outra parte do poema que nos lembrava que el río Guadalquivir tiene las barbas granates. Los dos rios de Granada uno llanto y otro sangre. Granada é também a Allambra, o Palácio da Dinastia Nasrida. Não me perguntem o que vi em Granada, pois vi apenas e só, o Palácio, as suas fontes, os seus jardins, a arte islâmica, as cores, os desenhos, a arquitectura. Entra-se no território palaciano e a cabeça perde-se na contemplação dos tectos, das paredes, das colunas. Sentimo-nos como quando um olhar amado nos imobiliza o pensamento. Perdidos no êxtase da beleza, apagam-se em nós todos os sons, exceptuando o da água correndo para as fontes, como a dos Leões, em cujo jardim sentimos o paraíso. Se os traços arquitectónicos já não fossem suficientes para nos arrebatar, as letras do alfabeto árabe lançam-se em desejos geométricos com o nome de Deus, das suras e versículos, como para além da beleza terrena pudéssemos acrescentar a divina. A Alhambra, não se visita, vive-se, sala a sala, corredor a corredor, são espaços e a cada um deles corresponde um tempo de perfeição, como se percorrêssemos o caminho para Deus e a beleza fosse em crescendo. Quando deixamos o espaço palaciano e o procuramos olhar do exterior, temos de aguardar alguns instantes até que a respiração se normalize. Tanta excelência quase nos deixa sem fôlego. Granada é por fim o Guadalquivir. Não, o rio não atravessa a cidade. Os Los dos rios de Granada que o poeta referia, de pranto e sangue são o Darro e o Beiro, mas o Guadalquivir que o poeta falava vem da Sierra Nevada e atravessa a Andaluzia, os seus laranjais e as suas oliveiras, essas que o viram morrer, num lugar sem nome e numa tumba sem lugar. Talvez por isso o seu poema dizia, Ay, amor que se fue y no vino! Desde essa adolescência longínqua que não consigo desligar de mim estes três instantes que renascem quando cruzo Granada, o poeta, o palácio e o rio. E a música volta como um clarim tocando lentamente, ele vive aqui e vive em mim.
Fernão Vasques*
* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.
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