António Mesquita
Esta história de um operário inglês que, depois de um ataque cardíaco, cai nos dentes da engrenagem de um Estado que abandona os mais fracos à sua sorte, que se serve da iliteracia tecnológica como de uma guilhotina que corta a direito na carne, como no 'Mercador de Veneza', segundo a lógica dos interesses privados que dele se apoderaram, podia ser a perfeita ilustração da lei capitalista, tal como foi definida no século XIX por um certo Karl Marx.
Em face da eficácia chocante do filme, não faltaram os que a 'explicaram' pelo passado marxista de Ken Loach, o realizador. Claro que os que buscam as influências, senão as taras das ideologias, para demonstrarem a falência de uma obra enquanto arte, sempre se sentiram impotentes para aplicarem o seu preconceito a um génio como Eisenstein, por exemplo, perfeitamente 'manipulador' e ideologicamente orientado, no domínio das formas. Mas até ele atraiu a desconfiança do poder caligulesco.
Poderíamos falar, no caso de Loach, de coerência ou de estilo, e é até concebível que se filme à maneira do 'realismo soviético', como em pintura se viu, por exemplo, um regresso ao tempo anterior a Rafael. Porque há um tempo para inovar e outro para amadurecer. 'I, Daniel Blake' parece-me um 'vintage' por que há muito tempo ansiávamos, sem saber a forma que assumiria. Leva o humanismo para além da sua morte oficial.
Nestes tempos em que, pelos vistos, já perdemos o sentido da verdade numa curva da estrada, este drama surge-nos limpo e tocante como se o capitalismo financeiro e digital fosse apenas uma nova face da sempiterna figura da Necessidade e da guerra do homem contra o homem.
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