Mário Faria
(Jardim da Arca de Água) |
Não há dinheiro. Não há sanções. Gastam tudo e não cortam nada. Não estou morto. Olha embevecido para o discreto símbolo de Portugal na lapela de um casaco que já conheceu melhores dias e que invariavelmente o acompanha. Suspira pelas próximas eleições. Olha para a sua sombra. Está enorme. Invencível como o grupo lhe prometeu. Tem sede e fome. Pede uma francesinha e um fino ao empregado de bata branca. Solta um espilro sonoro. Cospe no chão. Preciso de sexo, grita. Ali não há mulher à vista.
Não tenho confiança neste governo. São feios, porcos e maus. Juros a zero por cento, não existe. Se existisse, não estava aqui. Os mercados estão podres. Não agem. Não castigam. Começa a chorar. Recompõe-se. Antes do fim do ano, vou ser ministra. Sou a melhor e comigo não se brinca. Sou boa, diz levantando as saias. Até lá, o meu cabelo vai cair. Tenho medo de ficar careca. E não suporto perucas. A minha mãe, também não.
Vê a televisão o dia todo. Ninguém o tira dali. Pode acontecer qualquer coisa. Quer estar preparado para fazer parte de um governo de salvação nacional. Serei o primeiro a saltar, promete. Tenho uma pedra no sapato. E não me deixa andar. Vou de autocarro ou de metro para a AR. O meu pai não gosta que viaje nos transportes públicos. Faz mal ao ego. E à saúde. Sempre me recomendou os submarinos. Um óptimo negócio. Tem um ataque de riso. Entalado, é salvo por um murro nas costas.
Tem medo de morrer, antes de provar a sua inocência. Fui o dono disto tudo, diz. Analisa mapas e quadros, cheios de números. E muitos gráficos inundados de cor. Pára, escuta e olha porque lhe querem tirar tudo. A inteligência, também. Dizem que sou corrupto e querem roubar-me. Estou muito cansado. Não consigo concentrar-me. Preciso de dormir. Gosto de estar aqui. É um lugar tranquilo, com muitas árvores e missa todos os dias. Baixa a cabeça e começa a chorar.
Tem o número sete na camisola. Todos os portugueses merecem esta vitória, diz. Sou o presidente de todos os portugueses. Meu pai foi rei em Moçambique. Ensinou-me a inventar factos. Minha mãe deixava-me brincar no Jardim e com ela aprendi a magia dos afectos. A crise é só fumaça. Os homens fumam muito e deixam beatas por todo o lado. Estou farto de varrer. Fecharam-me aqui. E dá um safanão no enfermeiro.
É alto, magro, muito esticado, cabelo ralo e grisalho, discreto, simples e aprumado; anda assente na sola dos pés, deixando a ponta dos mesmos escorregar com uma inesperada suavidade. Normalmente, caminha acompanhado de uma senhora que pode ser mãe ou a esposa. Acompanha-a a uma distância de um metro. Nunca ouvi um som dele. Nem um gesto, para além dos movimentos de locomoção. Infelizmente, as festas da Senhora da Saúde arrancam, hoje, no meu jardim de Arca de Água. Os dois estavam sentados num dos poucos bancos que a organização não tomou. Ele parecia uma estátua, ela uma matrioska envelhecida. O som estridente da música não mudou o trejeito melancólico dele e do sofrimento dela.
O homem atravessou a avenida a correr em alta velocidade. Passou pela Casa Lemos, as tendas das farturas Adelina e Ramires, subiu até à gruta. Parou junto de mim. Reconheceu-me. Tapou os ouvidos, antes de falar. Há anos que não via o Karaté Kid. Desde a morte da sua avó. Embora jovem, as marcas do rosto não enganavam a erosão provocada pela doença. Cumprimentou-me. Fez um silêncio em que não interferi. Estou muito zangado: não fui convocado para os jogos olímpicos, disse. Reparei que o equipamento, próprio de quem pratica artes marciais, está muito puído. Dei-lhe tempo para desabafar. Estava perturbado. Adeus, gritou já em passo de corrida, cada vez mais depressa e a gritar: “ISRAEEEL, ISRAEEEL,ISRAEEEL”.
Nota: Gonçalo M. Tavares é citado neste artigo.
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