01/04/16
A SAGRAÇÃO DA PRIMAVERA
Mário Martins
https://www.google.pt/search?q=a+sagração+da+primavera&tbm=
Como no início da obra-prima de Stravinsky, o reino vegetal desperta lentamente ao som melodioso do fagote, os campos tingem-se de verde, as andorinhas regressam aos seus beirais, tudo parece cumprir o ciclo natural, quando, de repente – acção! – bum!, bum!, bum!, bum!, bum!, bum!, bum!, bum! bum!, o som violento das cordas não consegue abafar o estrondo medonho das bombas, no instante anterior os mortos eram vivos com horários, tarefas, relações e sonhos, agora não têm que tratar dos estropiados num ambiente de fumo e pânico, nem que identificar, chorar e homenagear os que morreram (outros exultarão), nem que perseguir os autores vivos dos atentados (outros organizarão novos atentados), nem que levantar novas muralhas, nem que fingir que a vida continua como dantes. Insensíveis ao que se passa no topo do reino animal, ao sangue quente das vítimas que mancha o chão da cidade e aos rios de tinta dos analistas, as primeiras flores oferecem os seus cálices de néctar. Triste condição, a humana…
O ESPELHO INTEIRO
"O deserto é a única coisa que só pode ser destruída pela construção."
(Boris Vian)
Este deserto é o nada, e é uma abstracção. O construído, como uma cidade abandonada, pode também ser uma espécie de deserto. Mas Vian refere-se a uma cidade viva que só pode matar outra coisa viva que, neste caso, é o deserto real, que nada tem de abstracto. Eis um exemplo do jogo de palavras.
Este jogo pode alimentar uma discussão sem fim. Os defensores de pontos de vista diferentes nunca estarão, de facto, a falar da mesma coisa.
Edgar Morin ("Le vif du sujet") elaborou uma teoria do sujeito individual que multiplica os efeitos babélicos da linguagem. Segundo ele (na linha de Freud), a unidade do sujeito é um mito. Todos somos duais (ou histéricos: desdobramo-nos num 'ego' e num 'alter ego') e temos múltiplas personalidades, conforme o contexto, os nossos interlocutores e a influência dos nossos 'génios' (o 'daimon' dos Gregos, a que Morin chama 'eloim'). No alto desta estrutura que assenta no 'Inconsciente' e no 'id' psicanalíticos, temos ainda o Super Ego onde reside o poder do social. Para além disso, ignoramos tudo daquilo a que Morin chama de antropocosmologia, ciência ainda por fundar.
Este indivíduo estilhaçado parece à mercê de inúmeros demónios e potências. Como a rainha da Branca de Neve, precisamos do espelho inteiro que nos minta completamente.
Eis um outro deserto.
Eis um outro deserto.
CONCERTO PELA PAZ
O Auditório Municipal de Vila Nova de Gaia, no passado dia 18 de Março, foi pequeno para as pessoas que pretendiam assistir ao Concerto pela Paz, organizado pelo Conselho Português para a Paz e Cooperação, com o apoio da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia e da Associação das Colectividades de Vila Nova de Gaia.
A entusiástica participação de todos, mas muito particularmente da juventude, em esmagadora maioria, através da Academia de Música de Vilar do Paraíso, da Associação Cultural e Musical de Avintes, do Conservatório de Música de Vila Nova de Gaia, da Escola De Música de Perosinho, do Ginasiano Escola de Dança, da Ilha Mágica, Orfeão da Madalena, de Daniel Cunha e Sérgio Garcia, demonstrou que as pessoas são sensíveis aos valores da Paz, da Solidariedade e da Fraternidade. Demonstrou também que a juventude, ao contrário do que alguns dizem, é responsável, tem grandes capacidades de trabalho e de organização, sensibilidades e valores, como demonstrou através da musica, da dança e do canto. Vila Nova de Gaia está recheada de jovens de grande talento , fruto de todo um trabalho que tem sido desenvolvido ao longo de anos por pessoas e instituições locais de grande prestigio nacional e internacional.
A Ilha Mágica, grupo constituído por quatro pessoas, divulgou poesia adequada ao tema da Paz , e leu um texto que me impressionou bastante. Presente na minha memória há muitos anos, mas oportuno nos tempos negros que os povos estão presentemente a viver, tempos de guerras que se alastram, envolvendo cada vez mais países.
O texto foi divulgado através do cinema em 1940, no início da 2ª guerra mundial, cujos contornos ainda eram mal conhecidos. É um grito extraordinariamente inteligente a favor da Paz, de Charles Chaplin, no seu filme “O Grande Ditador” que permito-me transcrever:
O DISCURSO FINAL DE “O GRANDE DITADOR”
Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar a todos - se possível - judeus, o gentio... negros... brancos. Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo - não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar ou desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover todas as nossas necessidades. O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos cépticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido. A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A próxima natureza dessas coisas é um apelo eloquente à bondade do homem... um apelo à fraternidade universal... à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhões de pessoas pelo mundo fora... milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas... vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que me podem ouvir eu digo: "Não desespereis!" A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia... da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há-de retornar ao povo. E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá. Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... que vos desprezam... que vos escravizam... que arregimentam as vossas vidas... que ditam os vossos actos, as vossas ideias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como um gado humano e que vos utilizam como carne para canhão! Não sois máquina! Homens é que sóis! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar... os que não se fazem amar e os inumanos. Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas é escrito que o Reino de Deus está dentro do homem - não de um só homem ou um grupo de homens, mas dos homens todos! Está em vós! Vós, o povo, tendes o poder - o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela... de fazê-la uma aventura maravilhosa. Portanto - em nome da democracia - usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo... um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice. É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos. Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontres, levanta os olhos! Vês, Hannah?! O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo - um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!
de Charles Chaplin, no filme The Great Dictator (O Grande Ditador) 1940.
CARTAS DE SANTA MARIA
(Ruínas do Palácio de Cristovão de Moura) |
Barca d’Alva, 31 de Março
Cheguei há três dias e por aqui fiquei neste pequeno lugar que nem aldeia chega a ser. Cerca de 40 casas, duas pequenas ruas, dois cafés e a N221. O resto é uma paisagem avassaladora e o rio. Com o curso sustido cerca de 15 quilómetros a montante, transforma-se em lago quando ladeado de duas margens portuguesas. Dizem que a sua riqueza são os olivais, os vinhedos e as amêndoas. Estas últimas engrandecem a beleza da paisagem nos meses finais do Inverno. No Verão o calor estiola. Em 1887, a linha férrea que sai do Porto para Leste, terminou aqui a construção do seu 200º quilómetro e o lugar passou a constar do mapa. A serenidade e a formosura do espaço mereciam esta paragem, mas também me sentia cansado de tão longa marcha. Vim ao longo da N108. Não trouxe máquina fotográfica, preferi que fossem os olhos a levar tudo que neles coubesse. Só a chuva me reteve um dia ou outro. Permiti-me o luxo de uma dormida no antigo convento de Alpendurada. Os claustros e a paisagem fizeram compensar o custo da estadia. O deslumbramento do Douro no entardecer. Em Ancede procurei o mosteiro de Santo André erguido em couto doado pelo primeiro rei nesse longínquo século XII, esteve na posse dos cónegos regrantes de Santo Agostinho até 1559, ano em que, pasme-se, passou para a jurisdição do mosteiro de S. Domingos de Lisboa. Como tantos edifícios medievais que os séculos foram deteriorando, também este sofreu alterações e acrescentos de outras artes que não a românica inicial. No entanto, as suas pedras seculares prosseguem a sua viagem no tempo, sobranceiras ao rio, voltadas a sul de onde recebem o sol que lhes alimenta a alma. Não podia deixar de parar em Tormes. Visitar a casa do escritor, reviver A Cidade e as Serras, nunca é demais, é quase um dever. Caminhar em silêncio pelas salas, pelos quartos, olhar o horizonte pelas janelas em guilhotina e de pequenos vidros quadrados. Sempre me encantou o terreiro que permite o acesso à casa. Deixei-me ficar largas horas sobre o varandim que se debruça sobre a paisagem. Aregos do outro lado e o curso tranquilo do rio. Aguardei pelo entardecer e afastei a recordação nostálgica de outras visitas anteriores. Permiti que os olhos vadiassem, sem tempo, sem pressa e que guardassem o que lhes apetecesse. A paisagem que nos visita até à Régua, chega a ser esmagadora. O que a história nos diz é que Peso era o lugar que ficava na parte mais elevada e que a Régua, era o espaço ribeirinho. Com a chegada do comboio, cresceu a Régua, o suficiente para se encontrar com o Peso. Atravessei o rio e segui pela N222, nesse troço até ao Pinhão que dizem ser a melhor estrada do mundo. É difícil deixar descansar o olhar face ao deslumbramento da natureza com as montanhas descendo em socalcos. Em Folgosa, voltei a exceder-me e alojei-me no Folgosa do Douro. O preço seria compensado por esse momento extraordinário de ver o amanhecer romper a noite e erguer-se num eflúvio de luminosidade sobre um caudal de rio imobilizado. Na margem contrária, o comboio deslizava, quase perdido no tempo, silencioso como um fantasma. A partir do Pinhão quase abandonei a estrada e segui ao longo da linha férrea. É uma caminhada solitária e encantatória. A mistura de uma via centenária, as montanhas rasgadas pelos canteiros das vinhas, um rio quase irreal na sua sumptuosidade e um silêncio povoado de sons imperceptíveis e longínquos, quase nos arranca do estado real e nos mergulha numa fantasia soberba. Assim cheguei há três dias. No segundo dia desta estadia, subi a Castelo Rodrigo à aldeia erguida como atalaia sobre as terras que se estendem a perder de vista. Sempre me surpreenderam as ruínas do palácio do traidor Cristóvão de Moura. Surpreender não é bem o termo, há um certo fascínio que me atrai. A destruição que sobrou do incêndio, perpetuada no tempo como lembrança da miséria e cupidez humanas. Ao longe, ou sob a iluminação nocturna, parece enfeitiçar-nos, deixa-nos o olhar em pensamento de reflexão. Esmaga pela grandeza e pela decadência. Dizem-me os prospectos turísticos que esta Barca d’Alva se localiza num bonito vale na margem esquerda do Douro, integrada no espaço do Parque Natural do Douro Internacional. Nos passos que por aqui dei em deambulações de olhares e lembranças, veio-me à memória palavras que creio de António Cabral e que a voz de Adriano, pujante e viva nos cantava, “Foi em Barca d’Alva/ quando o sol nascia/ uma ceifeira cantava/cantando vertia/trovas na fronteira/quando o sol nascia (…) Moça tão formosa/ não vi na fronteira/ como uma ceifeira/ que cantava rosa”. Amanhã, aos primeiros alvores do dia, deixo este lugar. Vou atravessar o Águeda pela antiga ponte ferroviária em direcção a Boadilla.
Fernão Vasques*
* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.
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