cara Filipa Vicente
Endereço-lhe esta carta, no pressuposto de que me autoriza este, digamos, atrevimento, para a saudar pelo seu livro, A Arte sem História. Foi um acaso que me levou até ele, um bom acaso, permito-me dizê-lo agora. Ao passar pelo JL, encontrei a Lídia Jorge que me recomendou a sua leitura e fê-lo tão vivamente que não era possível recusá-lo. Não sei como adjectivá-lo, pois dizer simplesmente que é um livro bonito parece-me até desadequado, e bom, insuficiente. Talvez, encantador, no sentido que nos enfeitiça o olhar, a leitura e até o toque. Apetece-nos deixar nele as mãos nesse afago de prazer pela apresentação, pelo tema e pela bonita e perfeita composição. Acresce que colocar no devido lugar da História os seus personagens só pode ser um aspecto positivo que engrandece a obra e se os personagens são mulheres, esses seres insubstituíveis que ao longo do tempo se destacaram, pela sua perseverança, pela sua coragem e, neste caso, também pela sua arte, só lhe podemos ficar gratos por nos ter proporcionado o contacto atento com esta Arte sem História. O conceito de História total permitiu abrir horizontes, rasgar janelas no passado que nos permitiram aceder a conhecimentos até então guardados nesses armários do tempo que permaneciam por abrir. Pese embora, José Mattoso na sua A Escrita da História nos dizer que «foram, afinal, os movimentos feministas, com a sua própria contestação do próprio ordenamento da sociedade ocidental, aquilo que fez ver também a necessidade de introduzir este novo factor como indispensável para se poder alcançar esse ideal», opinião que só pode merecer o meu acordo, não posso deixar de referir que por momentos pensei encontrar na sua bela escrita, a ideia do machismo, da supremacia. Mesmo admitindo estar correcta a minha leitura, em nada ofusca a riqueza do texto, apenas me deixa nessa interrogação de saber se a diferença tão sensível entre o homem e a mulher, ainda hoje tão visível, se resumiu a uma simples ideia de machismo. O mesmo José Mattoso, na já referida obra, escreveu a propósito da Idade Média, as seguintes palavras, «é verdade que a sociedade medieval é fundamentalmente machista. Que o pai é a autoridade familiar. Tal é, sem dúvida, a norma. Os textos e toda a espécie de vestígios dizem-no à saciedade. O que a norma defende, proclama e exprime, é uma ordem de valores. Ela não implica necessariamente a inferiorização da mulher, nem que se lhe recuse qualquer papel efectivo nas decisões familiares». Creio ser esta a questão essencial, «a ordem de valores» que a cada espaço temporal prevalece nas sociedades e acaba por discriminar distintos grupos, as mulheres sem dúvida, mas tantos outros, como no presente separa os que trabalham, indiferente ao género, dos que governam ou de alguma forma detêm o poder, como aliás, muito bem o expressa a Filipa Vicente na página 63, «as mulheres não são necessariamente mais atentas aos direitos das mulheres só por serem mulheres. Como tem sido tão estudado nas últimas décadas, as mulheres, tal como os homens, fazem parte de um mesmo contexto político, social, cultural com diferentes configurações históricas e, como tal, também reificam e reproduzem a hegemonia patriarcal da sociedade onde vivem, contribuindo elas próprias para a sua subalternização.», e vai até bem mais longe já na fase terminal deste excelente livro, na sua página 233, quando escreve que «como tem sido muito estudado pelas ciências sociais e humanas, tudo aquilo que implique uma mudança dos nossos hábitos, da nossa forma de pensar e de agir quotidianamente, ou uma dificuldade acrescida àquilo que fazemos automaticamente, gera resistências. A mudança implica parar e questionar, implica uma atitude proactiva que se pode tornar mais um obstáculo, a juntar aos muitos que a simples vivência da normalidade já proporciona.» A demonstrar a grandeza destas suas palavras temos o presente deste nosso país, onde se impõem pretensas e profundas mudanças desestruturantes da sociedade e da sua coesão social, sem que haja a mínima intenção desse tão necessário, «parar e questionar», gerando desigualdades, discriminações, e paralisando a criatividade e a promoção de uma igualdade, já não tanto, dos grupos sociais, mas de alguns dos seus componentes, como é o caso do masculino-feminino, tal como aparece espelhado nesta obra literária que bem podemos chamar de arte. Estimada Filipa Vicente, já não vivemos em tempos medievais e no entanto, bem podemos afirmar que o nosso país humedeceu, cheira a bafio, ganha bolor e as ideias, a criação do pensamento, rasteja pelo soalho fugindo das baratas nascidas na estrumeira sem limpeza do poder. Vivemos três anos de intrujices e gatunagem legalizadas. Este ano, fazemos um interregno, pois vão juntar a demagogia à aldrabice enquanto escondem debaixo do tapete os actos de rapina que fizeram desabar sobre a sociedade, os quais recuperarão em 2016, «se Deus quiser» dirão as diabólicas figuras de um poder assaltado três anos antes. Cara Filipa Vicente, como acreditar no futuro nestas circunstâncias, como proteger os humanos direitos das mulheres e também dos homens neste cerco mortal montado por este tribunal de maldades, onde figuras estúpidas e perversas, saídas das cavernas mais escuras da História, vertem sentenças definitivas a favor de um poder fétido e ilegal? Perdoe-me este desvio do que é essencial e aqui me trouxe, o elogio mais do que merecido ao seu belo trabalho vertido neste A Arte sem História.
Receba os meus mais calorosos cumprimentos,
Afonso Anes Penedo
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