Mário Faria
A Glória nasceu em Paços de Ferreira. Não diz a idade que tem, mas conta que a mãe vendia galinhas e ovos, e o pai era jornaleiro; veio trabalhar para a cidade do Porto, mal completou doze anos, com a 4ª classe no bornal. Foi ocupar o lugar de aprendiz de criada, na casa de um renomado médico da cidade. Com ela viviam na cave, mais três criadas: a cozinheira, a Luísa que tratava de todo o serviço de limpeza e a Alice “Maluca” que animava as noites com uma alegria contagiante e que (basicamente) cuidava da pequenada e servia de acompanhante e apoio da matriarca que por ela tinha uma amizade muito especial; por isso, gozava de um estatuto muito particular que lhe permitia, entre outras loucuras, a de se refugiar debaixo de uma das camas dos meninos para pôr em dia a leitura dos livros de banda desenhada. A Glória trabalhava sob a orientação da Luísa, e nas horas das refeições apoiava a cozinheira: tinha como missão colocar as travessas no elevador, ao sinal da chefe de mesa, com celeridade para que a comida chegasse quentinha, quentinha, como o senhor doutor exigia. A limpeza, a lavagem da roupa e o serviço de passar a ferro, eram tarefas duras: os electro domésticos ainda não tinham chegado e o frigorífico, o primeiro a bater a porta, só uns anos depois. A senhora da Casa, a D. Elisa, todos os dias controlava os serviços e quando parava e apontava o dedo para um armário em detectava pó, estava o caldo entornado. Nesses dias, não havia a habitual tolerância no alargamento da hora do almoço e todas ficavam obrigadas a pôr tudo nos trinques. D. Elisa, figura da aristocracia nortenha, tinha um pequeno defeito na perna e usava uma bengala para a auxiliar a caminhar, e a Alice tinha o hábito de se estender no soalho, com o ouvido bem colado ao chão, para adivinhar os seus passos e para avisar as colegas dos seus avanços. Aquelas escadas eram corridas à velocidade da luz para avisar as colegas e era mais um motivo de regozijo da ganapada que vivia estas histórias de espionagem com profundo agrado e que à noite eram motivo de pormenorizada narrativa, depois do jantar, uma vez que os meninos da Casa (três rapazes e uma rapariga) ficavam autorizados a juntar-se às criadas, até às dez da noite, hora de ir para a cama.
Depois do jantar, os genros saíam, as meninas/senhoras ficavam em casa e juntavam-se aos pais na sala de estar. O senhor doutor lia o Comércio do Porto e o Primeiro de Janeiro, bebia o seu cálice de Porto e não dispensava o charuto, apesar das recomendações e protestos da D. Elisa que centrava toda a sua atenção na rádio e, particularmente, na audição das radionovelas em voga; uma das filhas era simplesmente a esposa que tratava da educação dos filhos, apesar da enorme vocação pelas artes: pintura, poesia e canto eram a sua paixão; tinha muito talento que expunha em recitais muito discretos destinado a familiares e amigos; a outra filha tratava da logística daCasa e por ela passavam todas as importantes decisões na gestão muito criteriosa do dinheiro distribuído para o consumo doméstico, sendo que o Sr. Doutor não alinhava em desperdícios e não tolerava o despesismo. Não conversavam muito uns com os outros, as relações eram frias e a afectuosidade não era prática dos homens da Casa: havia falta de calor humano naquela família e os miúdos procuravam no andar de baixo, reservado à criadagem, a proximidade, a liberdade e a alegria que lhes faltava em cima.
No decénio seguinte ao fim da guerra, ocorreu uma série de acontecimentos que alteraram este quadro de bem-aventurança. O Sr. Doutor morreu de um enfarte, um neto com a meningite e a filha poetisa de tuberculose. Foram desgostos que devastaram a família, que nem por isso se uniu mais. Do outro casal, nasceu mais um rapaz: esse sim, passou a ser o “ai jesus” de toda a família. Com a morte do patriarca, foi alienado grande parte do vasto património imobiliário, mas manteve-se intocável a joia da coroa, a Casa. Os genros assumiram as rédeas e o sustento da família e estabeleceram-se no ramo da restauração, com inesperado sucesso que exploraram, investindo na área da panificação com igual êxito. Novos-ricos e com dinheiro fresco, retomaram os padrões do antanho. A D. Elisa ia envelhecendo rapidamente e raramente saía do seu quarto. A angina de peito não lhe dava descanso e viva numa redoma entre as crises que se sucediam. Valia-lhe o médico de família, vizinho e antigo colega do marido, que lhe proporcionava os cuidados médicos primários que na altura passavam basicamente pela colocação de ventosas no peito e nas costas. Eram noites de ansiedade e todo o pessoal ficava convocado, ora para estar junto da doente, ora para tratar e deitar os meninos.
Lá em baixo, a vida também mexeu e muito. A Luísa casou-se com um maquinista da CP e foi viver para o Entroncamento. A Alice Maluca viveu um tórrido romance que levou à intervenção da D. Elisa que chamou o namorado à sua presença para “aconselhar” o casamento como única saída, por ter desonrado uma moça de menor idade, sob pena, se assim não procedesse, de denúncia às autoridades, pelo mal que fez, apesar da resistência da rapariga. O jovem cumpriu o seu dever, casaram e foram infelizes, para sempre. A cozinheira, coitada, morreu com uma pneumonia galopante. Ficou na campa da família: um tributo mais do que merecido pois trabalhou na Casa mais de trinta anos. Entrou para o seu lugar a “Mouca” que pouco ouvia e raramente falava, mas os seus cozinhados eram de excelência; D. Elisa conseguiu que o filho da nova cozinheira (o Palhaço de Amarante) fosse para a Tutoria em regime de internato. Com os membros adultos da família dedicados a tempo inteiro ao negócio, a Glória passou a responder por todo serviço da casa, que contava com mais um elemento, a Deolinda Costureira que tinha a seu cargo a manutenção do vestuário e dos atoalhados da Casa e das lojas: entrava às nove e saía depois do jantar. Folgava ao sábado e domingo. A Mouca e a Glória apenas tinham a tarde de domingo para descanso que depois se estendeu ao dia todo; o domingo era um dia especial consagrado: à missa de manhã, ao futebol de tarde e ao cinema à noite; de vez em quando uns passeios à Foz, Leça da Palmeira ou a Miramar e, muito raramente, visitas de circunstância a familiares o que era quase sempre uma grande seca para a pequenada. As refeições dominicais, tinham passado para o restaurante e lá se juntavam muito amigos o que era muito agradável para a rapaziada que pouco convívio animado tinha com os mais velhos.
No trabalho, a Glória vestia a farda que cobria com um avental que ia mudando, segundo o tipo de serviço que prestava: um para a limpeza, outro para o serviço de mesa, um branco para os cuidados que a doença da D. Elisa carecia e um outro mais garrido para os recados que tinha de cumprir ou quando tinha de compensar a falta de pessoal na padaria ou no restaurante. Era competente, esmerada, rápida, ladina, engraçada, arrebitada e com uma alma do tamanho do mundo. Foi o menino mais velho que lhe pôs o nome de Glorinha dos Aventais, um trocadilho tirado do título de um romance de Júlio Diniz. Glorinha ficou para sempre; dos Aventais foi caindo, embora ela goste muito desse novo nome por completo e o repita com satisfação, sempre que pode. Ainda, hoje, apesar de todas as voltas e da idade, não dispensa o avental em casa e na rua, ao serviço da família para quem continua a trabalhar, com a mesma dedicação.
O Natal era um dia muito especial porque reunia a família e alguns amigos que se juntavam na ceia. Era uma noite animada e a rapaziada, logo que autorizado, era escada, escada abaixo para colher o melhor de dois mundos. Lá em baixo, o pobre de costume, o Sr. Acácio, familiar muito afastado da D. Elisa, acompanhava a criadagem que nesse dia tinha direito a uma verdadeira ceia em tudo igual aos senhores lá de cima, o que raramente acontecia porque lhes competia sempre, e em primeiro lugar, comer as sobras das refeições anteriores. O que restava dessas sobras, era destinado aos pobrezinhos. A Sra. Alcina, uma velhinha muito querida, recebia o melhor da ementa feita de restos. Na sala de jantar, os amigos solteirões, folgazões e mulherengos, contavam histórias das aventuras vividas e das namoradas que tinham espalhado pelo país, fruto das deslocações que faziam na condição de caixeiros-viajantes. Para a miudagem, a manhã do dia de Natal nascia mais cedo. A Glorinha acompanhava a abertura dos presentes e participava com entusiasmo naquele jogo de satisfação, admiração e espanto para valorizar as ofertas que eram modestas e de que tinha sido a principal animadora, desde a pesquisa à compra, pois os membros da família não tinham tempo nem paciência para essas minudências.O dia de Natal era um dia chatinho se não aparecesse o João Tau, um tipo muito bem disposto que propiciava momentos de convívio muito entretidos. Lá em baixo, ao som da música pedida, transmitida pela Renascença ou pelos Emissores do Norte Reunidos, havia canto e dança, sob a superior direcção da Glorinha dos Aventais, que num dia de Natal, soube que tinha deixado o posto de criada interna e tinha sido promovida a empregada-chefe da Casa.
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