01/08/13
CRIME! GRITOU D. DOROTEIA
Mário Faria
Vivia do mesmo lado da cidade e habitava uma daquelas casas de um bairro social da zona. Era um jovem adulto, baixo, loiro, de feições rudes, falava alto e entrava em conflito demasiadas vezes com aqueles com quem se relacionava. Eram demasiado grosseiros uns com os outros para poderem ser amigos. Conhecia-o à distância e privava com ele de forma cortês, mas sempre afastado, porque não éramos da mesma geração nem tínhamos vínculos que nos pudessem aproximar.
Passei a vê-lo com menos regularidade, porque entrou em rota de colisão com os amigos. Passou a frequentar outras redondezas e lá fez novos amigos de ocasião. Passei a vê-lo com menos frequência, mas dava para constatar que entrou num processo de degradação acelerado. Perdeu o emprego, passou a beber ainda mais, tornou-se alcoólico, perdeu a mulher e a família que o abandonou, sem direito a recurso. Sempre que o via ou estava embriagado ou com atitudes grosseiras e violentas, por falta de dinheiro para consumir álcool. Por uma vez, saiu-lhe mal a bravata e foi brutalmente agredido, tendo sido hospitalizado com uma série de lesões de média gravidade na cabeça e na cara. Em função dessa cura forçada, andou direitinho alguns meses, mas recaiu e o tombo foi definitivo. Deixou de ter acolhimento junto das associações públicas ou privadas que lhe davam apoio e fez da loja Multibanco a sua casa. Viveu lá muitos meses e foi sempre muito próximo do local que lhe servia de moradia que o vi mais algumas vezes: ou muito bêbedo e feito um farrapo ou quase sóbrio e, nesses momentos, vagueando pela rua que nem um zombie. Impressionante era a feia máscara em que o rosto se tinha tornado, massacrado pela fúria do vício.
Foi na tabacaria, onde compro habitualmente o jornal, que tomei conhecimento que o homem tinha morrido durante a noite, ao que parece vítima de um ataque cardíaco, segundo a mensageira que deu a notícia de forma condoída. Fiquei surpreso e com pena pela morte de um homem que sempre detestei, provavelmente porque durante a sua vida só encontrei os defeitos que o "desaparecimento" sempre humaniza. Nunca pensei que o seu falecimento ainda daria muito que falar. No dia seguinte, no mesmo sítio e na altura que estava em fila para comprar o Público, esperando pacientemente que as velhinhas do costume terminassem os jogos da raspadinha, a mensageira entrou de rompante na tabacaria e gritou: “Foi crime!”. Tinha havido uma denúncia, a polícia judiciária tinha feito uma minuciosa investigação no local e falado com os mais próximos da vítima que teria sido morto por envenenamento com estricnina. O móbil do crime teria sido o roubo, pois os familiares garantiam que o homem tinha obtido um prémio elevado no Euromilhões, notícia que tinha deixado cair, por raiva, durante uma brutal discussão com os familiares, aquando de uma visita que fizera à sua antiga companheira. O dinheiro tinha voado e apontava-se o dedo a vários suspeitos que tinham em comum ser toxicodependentes. O crime, como ideia para a morte daquele infeliz, deu-lhe a notoriedade que nunca tinha merecido em vida. Talvez por isso ou por mero voyeurismo, a vizinhança cavalgou com prazer no jogo e os mais criativos acrescentaram algumas saborosas dicas ao homicídio.
O crime nasceu de repente e teve morte súbita: o funeral da “vítima” ocorreu dia e meio depois de ser encontrado sem vida, da forma mais humilde e quase sem acompanhamento. A morte seguiu o curso da sua vida. Não houve detenções porque nunca houve denúncia nem suspeitos e o enigma resultou de uma enorme cabala. No bairro, consta que o trama foi lançado por D. Dorotéia* que é useira e vezeira nessas práticas. Continua sem fadiga e remorso a desenvolver as suas actividades e agora juntou-se ao grupo da raspadinha de que se tornou fiel fã. É assim a gente cá do meu bairro.
*D. Doroteia é o nome de uma personagem do romance (e telenovela) de Jorge Amado : Gabriela, Cravo e Canela. A alcunha, assenta-lhe que nem uma luva.
OS ENCONTROS COM DEUS
Alcino Silva
Perdera já na memória as vezes que assim acontecera, mas todos os anos, no primeiro dia, chegava cedo e aguardava, afastado da porta e do ajuntamento que crescia junto desta, que o acesso fosse permitido. Entrava e sentava-se como sempre no último banco na extremidade do meio. Alheava-se do ir e vir daqueles que se mostravam, dos convidados que privilegiadamente se sentavam na frente, ignorava propositadamente a luxúria do barroco e deixava-se escorregar no estremecimento da dureza da pedra e na pureza da alvura da abóboda. Quando a doçura dos primeiros sons começavam a percorrer a álea central, sentia como se estivesse no interior de um avião a rolar pela pista em rota de ascensão. Deixava-se ir como se olhasse pela janela e visse as casas diminuindo de tamanho e o mar se deixasse contemplar no brilho intenso que os raios solares faziam nascer nas suas águas. O destino era sempre a aldeia nas montanhas a uma altitude que a colocava acima de todas as outras. A sua viagem tinha início no planalto, uma espécie de terreno ondulado que fazia a estrada adquirir a beleza das formas perfeitas. Imobilizava o pensamento e o olhar, escutava o vento e sentia que em si penetrava o canto longínquo que há milénios atravessava o Mediterrâneo. Um canto de dor, na doçura de um sofrimento que parece não se extinguir entre os que sobre o azul forte das águas tentam encontrar outros lugares, os que ali combateram, os que de algum modo alcançaram o que procuravam. A melodia penetra o tempo e a memória e fazem nascer nos olhos essas águas que o sentimento não retém e escorrem tristes para a alma. Em seu redor, tudo canta, tudo exprime a alegria e o sofrimento, o tempo e o finito, a dor da morte e o prazer da vida. É então que na sua viagem, sente a presença de Deus, do Deus que sabe não existir e os crentes nunca encontram apesar de numa fé sem limites acreditarem na sua existência. Deus chega porque Deus é música, mas os crentes não sabem porque só conseguem escutar os seus próprios lamentos. As ruas estreitas da aldeia, sossegam-lhe o frio que o vento glacial parece arrastar na sua passagem, mas os seus passos, dirigem-se para a fraga, para o ponto minúsculo e branco no cume isolado da cordilheira serrada. O caminho é pausado, mas quando chega deixa que o olhar se perca, adquira as asas de condor e sobrevoe o vale, gire sobre si próprio, sinta o devaneio das alturas, absorva a grandeza do granito que se acotovela como se lhe faltasse espaço, passeia o pensamento entre os castanhos cinzas da pedra milenar que por ali ficou quando o calor da matéria em fusão se extinguiu. Sente o poder da beleza que esmaga a pequenez da sua existência, e Deus regressa, porque Deus é beleza, mas os crentes não sabem, porque estão demasiado preocupados em olhar para si próprios. Desce com o sabor da perfeição desenhando o caminho do vale, mas não regressa a aldeia, prefere a vereda que conduz ao mosteiro, e por ali fica, sentindo o canto matinal dos monges acordando a madrugada e experimenta essa paz interior que resulta da harmonia da paisagem, da cadência que nasce do estar e sentir, do conviver pulsando a vivência da floresta e do murmurar do rio na sua procura de espaço aberto. Sente a tranquilidade e a serenidade do lugar e Deus volta a encontra-lo, porque Deus é silêncio, mas os crentes não sabem porque vivem ouvindo apenas as suas orações para remissão de pecados que cometem, quando não sabem viver com a música, a beleza e o silêncio de Deus. O tempo passou, apercebe-se que os bonitos sons dos instrumentos que o fizeram viajar, estão de regresso, vão voltando com essa tristeza melancólica de quem parte e tem de se despedir do que e de quem ama. Percebe que o avião perde altura, o mar está de novo próximo, as casas começam a aparecer como desenhos perceptíveis e então, a aeronave estremece e as asas balbuciam sopradas por uma rajada de vento. No seu pensamento exprime-se o desejo que o piloto seja competente enquanto o passageiro ao seu lado quase grita «que Deus nos ajude», mas Deus não ajuda, por isso é que os aviões caem. Deus existe para mostrar caminhos, mas a preguiça dos crentes, só lhe remete pedido de ajudas. Que bom é esse Deus dos crentes que lhes perdoa tudo e assim podem pecar porque serão sempre salvos, não se dando ao trabalho de escutar a sua música, apreciar a sua beleza, usufruir do seu silêncio e por essa razão morrem sem encontrar o seu Deus com essa esperança de que o paraíso permita por fim esse encontro, mas o paraíso é apenas uma fantasia humana. O avião tocou o solo, desliza suavemente na pista, os sons da música calaram-se e escuta-se agora o agradecimento pelo prazer da viagem. Com o mesmo silêncio que chegou, se retira. No olhar leva, a música, a beleza e o silêncio desse Deus que não existe.
ESTUPIDEZES
António Mesquita |
"The Mocking of Christ" (Fra Angelico) |
A propósito de artistas como Fra Angelico, Michel Houellebecq tem esta expressão: "estúpido como um verdadeiro pintor". Não podia estar mais de acordo. E penso até que o desenvolvimento de um tipo de percepção, em qualquer arte que seja, nos torna 'estúpidos' (e visionários, no pior sentido) em relação ao homem comum, o homem cuja especialização, se assim se pode dizer, é 'simplesmente' viver.
Isto não tem nada de novo. Desde sempre se considerou o artista maior como um disfuncional da sociedade. Daí que o seu papel de profeta e de 'marcador' da mudança, ao mesmo tempo que, segundo a expressão de Proust, nos vai colocando no nariz os óculos com que melhor veremos o presente em mutação e nos poupará ao 'choque do futuro'.
A 'estupidez' é, assim, grandemente incompreendida. Os 'inteligentes' numa espécie de habilidade não conseguem evitar um ar de sobrançaria em relação, como se diz nas empresas, aos que 'resistem à mudança', apenas para, dentro de pouquíssimo tempo, serem eles próprios os 'estúpidos' de miúdos mais hábeis numa técnica qualquer.
É por isso que a 'estupidez' é o novo 'sal da terra'. Precisamos de homens que não caiam de joelhos perante uma nova especialização. É preciso entender que, por exemplo, o melhor médico não é o que sabe 'tudo' duma doença, mas o que não confia no que sabe do homem todo, que é o essencial.
O consumidor de arte moderno (sobretudo o turista) só não tem a reacção do público contemporâneo das 'picassadas', porque, entretanto, essas mesmas 'picassadas' ganharam a maior das consagrações aos olhos dos bons burgueses: a do dinheiro. De então em diante, tornaram-se mais prudentes e preferem dizer que não percebem nada de pintura.
Um pouco o que se passava na política nacional, em que a maioria do povo dizia que não entendia de política. Até os 'artistas' darem cabo do respeito que deviam e se deviam, e agora se poder dizer, sem aspas, que a política é estúpida.
O MAR
Cristina Guerreiro
Às sete atrasadas saía e batia com a porta escapada da mão, carcaça mordida na boca, camisa desabotoada, gravata no bolso. Era sempre a descer e a escorregar até encontrar o outro que nos mesmos preparos e de cigarro nos beiços o espreitava das águas furtadas, de tronco a furar a pequena janela, quando a esquina se dobrava para mais uma descida íngreme em pequenos degraus polidos até se desprender em rua de cubos graníticos habituados à guarda montada.
O corte do assobio e a resposta, códigos.
As quatro pernas corriam desalmadas, as camisas como velas enfunadas e protegidas pelas laterais dos casacos, os sapatos ritmados no som ecoado do silêncio batido no solo e que desperta o início do dia.
Suados, vermelhos, ajeitaram calças e genitais, penduraram gravatas, alisaram a popa da moda, sentiram as moedas chocalhadas na poupança da corrida. Sábado haveria lanche.
Entraram no barco, galgaram o lance de escadas, puseram-se à ré e ao fresco pendurados no varandim circundante, cumprimentaram o Mestre.
Na concha da mão protegeram o lume do fósforo e no consolo, expeliram fumo pelas ventas, olhos fechados, a mão a vaguear pelo rosto mal barbeado, o som do coração a escutar-se maior que as bombas do barco e todo aquele lençol de água a pedir companhia, um leito imenso.
- Ali é o mar.
- Onde?
- Ali.
- Um dia hei-de ir por ali, não hei-de vir a correr como um doido para me enfiar num barquito como este e só chegar aquele lado.
- Mas ali é o mar! E tu sabes bem o que isso é.
- Não falo desse mar, falo de outro.
- Pois eu falo do mar que leva os homens, falo da guerra, falo que quando voltam, quase sempre vêm deitados e eu quero continuar a correr!
- Eu não. Eu quero ir por aquele mar que me há-de levar para um sítio diferente, quente, bonito, onde não tenha que correr nem usar gravata, nem morar num sítio onde tenho de andar dobrado.
- Pois sim, estou a ver que tens medo de perder comigo!
- Vai uma aposta?
- O que é que vale?
- O mar.
- Não, isso não.
- És um medroso. Do outro lado é o mar.
- Do outro lado do quê? Da nossa vida?
- Do nosso sonho.
- Não quero falar mais sobre estas coisas. Já chegámos.
- Encontramo-nos no regresso, até.
Na volta as sete eram esticadas em paragens de passos de tango, dois à frente rápidos, um lento, afasta à esquerda, gargalhada, repetição.
Mas só o ruído das sombras despegadas pelas solas no escorrer da penumbra, recordava o ciclo dos dias para quebrar a excepção dos anos. Houve tosse puxada para inicio de conversa. Medo também. E principalmente a vontade de não haver lugar para dizer fosse o que fosse.
- Não digas.
- Não disse nada.
- Não digas que me vais dizer que te vais embora.
- Não vou. Vou à procura do mar. Depois volto.
- Já disseste e eu pedi para não dizeres!
- Mas que difícil é falar contigo! Porque não vens comigo?!
- Porque eu não sou como tu. Eu tenho o rio.
- Eu preciso do mar, só assim saberei ver o rio.
UM RETRATO DA HUMANIDADE
Mário Martins
World Population Density Map |
Somos mais de 7.000 milhões. Praticamente metade homens, metade mulheres. 26% dos 0 aos 14 anos, 66% dos 15 aos 64 e 8% com 65 ou mais anos. Nascemos e morremos ao ritmo de 363.000 nascimentos e de 154.000 óbitos por dia, o que significa um acréscimo diário de 209.000 indivíduos. Reproduzimos 2,5 filhos por mulher, com uma mortalidade infantil de 39 por 1.000 (41 nos rapazes, 37 nas raparigas) e uma esperança média de vida de 67,6 anos (65,6 para o sexo masculino, 69,7 para o sexo feminino). Cerca de 80% ocupa apenas 10% da superfície terrestre; 90% vive no hemisfério norte (devido, em parte, à maior massa continental); quase 80% vive no hemisfério oriental (mais de 60% na Ásia) e apenas 20% no hemisfério ocidental; a maior parte ocupa as faixas costeiras e algumas das grandes bacias hidrográficas; cerca de 56% vive nos 10 países mais populosos: China: 1.343 milhões; India: 1.205; Estados Unidos: 314; Indonésia: 248; Brasil: 206; Paquistão: 190; Nigéria: 170; Bangladesh:161; Rússia: 138; Japão: 127; metade vive em zonas urbanas (2010). 61% tem facilidade de acesso aos cuidados de saúde (76% nas zonas urbanas, 45% nas rurais). A expectativa de escolaridade média é de 11 anos (2008). Dois terços dos 775 milhões de adultos analfabetos que existem no mundo são mulheres (estimativa 2010). 33% dapopulação mundial professa a religião cristã, 23% o islão, 14% o hinduísmo, 7% o budismo, 11% outras religiões, 10% não têm religião, 2% o ateísmo (est. 2010). Falamos cerca de 6.900 línguas; as primeiras línguas mais faladas são o Chinês (mandarim): 12.44%, Espanhol (castelhano): 4.85%, Inglês: 4.83%, Árabe: 3.25%, Hindi: 2.68%, Bengali: 2.66%, Português: 2.62%, Russo: 2.12%, Japonês: 1.80%,Alemão: 1.33%, Javanês: 1.25% (est. 2009). 6.000 milhões usam o telemóvel (2011), 2.100 milhões a Internet (2010) e mais de 1.000 milhões o automóvel. 36% da população empregada trabalha na agricultura, 22% na indústria e 42% nos serviços (est. 2007); 9% da população activa está desempregada (est. 2012). O PIB (produto interno bruto) per capita é de 12.500 dólares americanos (est. 2012). 0,5% da população mais rica é detentora de 35% da riqueza mundial. 12% da população mundial passa fome. |
| Fontes: |
http://www.indexmundi.com/ (CIA World Factbook)
http://www.slideshare.net/susybarreiros/distribuio-da-populao-mundial-11695734
http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=641778
http://www.iol.pt/push/iol-push---economia/lagarde-distribuicao-de-riqueza-fmi/1450196-6469.html
http://www.worldometers.info/cars/
http://pt.wikipedia.org/wiki/Popula%C3%A7%C3%A3o_mundial