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01/03/13

DILEMAS DE ELITE

António Mesquita
Luís XIV


Hans Enzensberger, no seu estudo sobre a UE, refere-se à prevalência, no seio das instituições europeias, de um 'método Monnet' (de Jean Monnet, o principal impulsionador da primeira comunidade). "O que isso quer dizer é uma muito específica compreensão da política. Ele preferia as 'decisões de uma elite estabelecidas por consenso', nas quais parlamentos e cidadãos tinham pouco a dizer. Fazia muito pouco caso de eleições e referendos." ( "Brussels, the gentle monster').

Como homem pragmático, Monnet punha a sua experiência do mundo empresarial e da burocracia do Estado ao serviço duma nova organização, saída da guerra, que garantisse a paz. Na primeira versão, esse projecto passava pelo controlo do poder económico alemão.

Esta política pressupunha uma reestruturação económica e política que nunca seria suficientemente explicada aos que iriam ser imediatamente prejudicados por ela. Se a política é a arte de fazer escolhas difíceis, eram precisos homens como Monnet para pôr os princípios (democráticos) 'na gaveta', que é o que a UE vem fazendo desde sempre, e que deu origem ao seu tão propalado 'défice democrático'.

Se a UE dispusesse duma polícia política, como a das ditaduras, ou uma agência de 'informação' como a CIA e, além disso, tivesse o poder sobre os órgãos de comunicação, deveríamos sentir-nos fortemente ameaçados. Mas não é o caso. Bruxelas é um monstro burocrático que, só nas directivas económicas, consome o equivalente do PIB da Holanda (ibidem), mas é um monstro tímido, com um mais do que justificado medo dos cidadãos. Neste momento, o referendo inglês é a sua maior dor de cabeça.

A situação parece ser, pois, a seguinte: temos uma 'elite esclarecida' que pilota a nau europeia, e uma gigantesca plebe, permanentemente descontente e cujos líderes de ocasião não se podem meter nos calabouços (que é o que Luís XIV teria feito).
Aproximamo-nos, assim, perigosamente, da 'doutrina do choque' que tem servido a outra 'elite esclarecida' para liberalizar e desregular a economia: a dos economistas do tipo dos ''Chicago Boys'. Este projecto europeu só avança com as oportunidades criadas pela crise. E quanto maior a tormenta, maiores as oportunidades.

Falta demonstrar que a democracia é compatível com a união dos estados 'feitos' (não a dos estados por fazer, como aconteceu nos EUA).

MARIAMAR

Alcino Silva



Aproximam-se de mim quase em silêncio e falam-me com delicadeza. É já a terceira vez que se chegam até junto da mesa onde me encontro no canto mais longínquo da sala. De certa forma segredam-me que o Café vai fechar e tenho de fazer o favor de sair. É um daqueles Cafés de bairro, barulhento e com pouca luz e neste momento já não tem clientes, restando apenas eu com os meus papéis e este lápis com que desenho letras, vagarosas e pensadas. Sentei-me aqui há várias horas e não fui capaz de sair. Está frio, sinto um frio intenso que me abraça, me envolve, me prende, viaja pelo interior dos meus braços e imobiliza-me os músculos e a noite fica ainda mais negra com este frio que me desgasta. Desde que soube que não voltavas, todos os dias me perco nessa incapacidade de regressar. Não, não me disseste que não vinhas mais, pressagio-o com esse instinto que possuímos de pressentir quando perdemos algo que nos é muito estimado. É verdade que só aparecias de tempos a tempos e, em certas ocasiões, estavas até muito tempo sem vir, mas sabia que haveria um dia que aquele telefonema ou mensagem que me chamava havia de surgir. Mas desta vez passou já tempo demasiado e sinto pelas gaivotas que esvoaçam em voos tranquilos que não voltarás. A cada tarde, quando o tempo em que o sol viaja por nós se aproxima do fim, vagueio, por aqui e por ali, olhando as pessoas mas não as vendo, tentando adivinhar-lhes os sonhos, os pensamentos, reconstruo-lhes vidas e caminhos. Não consigo regressar ao local onde sempre te esperava Mariamar, logo após receber a tua mensagem. Há uma incapacidade diária em sobreviver ao desaparecimento do sol. Caminho, normalmente sem destino pelas pequenas cidades dos arredores. Não procuro nada, talvez apenas o consolo para essa mágoa da ausência, dessa que magoa que nos comprime e nos fecha as estradas. Vagueio por ruas desconhecidas, sem destino e sem rumo, perco-me entre gentes, entre casas e lugares que não conheço e vou recordando os tempos que chegavas com esse teu silêncio escondido num sorriso que me desarmava. Escutava-te mesmo quando não falavas e gostava de ver os teus olhos procurar o sol a descer sobre o mar e a contares as estrelas que viajam no céu. Olhava apenas, nessa delícia que é admirarmos as pessoas belas e cuja presença nos traz esse conforto que nos aquece a alma. Na minha imaginação acolhia a tua cabeça entre os meus braços e afagava-te os cabelos num gesto de ternura. Eram tardes bonitas essas que se prolongavam pela noite que nos encontrou tantas vezes junto ao mar naquele sossego que resultava da tua presença calada. Por mim, ficava nessa companhia que procuravas onde dizias encontrar repouso para alguns momentos em que desejavas sair dessa corrente quotidiana onde vivias. Hoje, este Café donde vou sair após estas insistências, é apenas um refúgio como outros que encontro nos restantes dias que me levam por aí, apenas em lembranças de gestos que recordo com muito carinho, essa ternura que sentia sempre com a tua chegada. Vinhas até à praia sem hora certa e sem uma cadência que se conhecesse, mas quase decifrava quando podias chegar e a cada uma das tuas visitas, gravei-te o rosto, as expressões, os olhos, esse teu olhar que me aliciava de forma tão especial, o teu andar e os teus gestos. Quando partias de regresso à tua vida, ficava com todas essas imagens e com a voz. Já não estavas e ainda te ouvia, naquelas palavras pausadas que saíam em sons soltos e alegres. Por vezes, entro num transporte e vou olhando, para um, para outro, para este ou para aquele. Em certos momentos, surge uma mulher e um aspecto ou outro, chamam-me a atenção, mas quase logo percebo que não és tu. Ainda deixo os olhos presos no rosto da jovem mulher como se essa atitude a pudesse transformar em quem procuro, mas é inútil. Há uma luz intensa na composição, mas para mim só chega o negro da noite que se sente no exterior e que me abraça logo que deixo aquelas portas e recomeço o meu caminhar. Então, o frio que me agasalha, sim, pois é tão intenso que já não sei se vem do exterior ou do interior de mim, creio mesmo que habita no mais profundo do meu corpo, faz-se de novo notar, manifesta a sua presença como dono e senhor dos meus passos. Não chego a perceber o cansaço, só mais tarde o pressinto, mas sem tomar verdadeira consciência da sua presença. Em certos momentos e quando o escuro nocturno é mais premente, acendo uma espécie de luz e coloco-te no centro desse brilho e chego a sorrir como se me tivesses aparecido, mas quase logo, algo apaga essa luminosidade e tu regressas ao abrigo da minha memória. Tu és muito bonita, Mariamar. Nunca te cheguei a dizer verdadeiramente, mas tu sabia-lo, certamente que sim, pois os meus olhos não te podiam enganar e ver-te era como se alimentasse a alma, essa parte de nós que nos faz ter alento para os momentos mais agrestes. Por isso, as tuas vindas àqueles encontros de silêncio eram a parte mais importante da vida que levava. Para mim, o tempo media-se entre esses espaços em que ias e vinhas, entre a tua mensagem de chegada e a tua partida no momento em que te despedias com aquelas palavras tão simples mas para mim tão ternas. Em certos momentos da noite, ainda olho para o céu na procura das estrelas, aquelas que contavas e juntavas em grupos formando constelações, só que agora parecem apagadas. Certamente o brilho que via no céu não vinha das estrelas, mas antes eram os teus olhos que as acendiam e como não estás, para mim, aparecem apagadas. O espaço celeste não voltará a ser o mesmo depois da tua ausência. Nestes Cafés, sento-me em escritas de cartas imaginárias para um endereço que criei na memória para ti. Digo-te tudo aquilo que nunca fui capaz de to dizer nesses encontros em que apenas te escutava. Escrevo, páginas sobre páginas num diálogo em que escolho as palavras para te contar os caminhos do meu pensamento e como os pássaros da manhã pousavam para te levar mensagens que escrevia em noites em que o sono não chegava. Agora que o Café encerrou as suas portas e estou de novo nestas ruas sem nome e já sem gente, procuro descobrir onde me encontro para esse último caminhar até ao lugar onde me escondo do pensamento. Resisto um pouco nestes instantes. É como se a noite me trouxesse algum repouso. Será, porventura, o cansaço a pesar nos meus passos. O frio que não deixou de me acompanhar, retorna com mais intensidade, açoita-me o rosto, como se sentisse este isolamento mais pesado e mais só. O amanhecer alivia-me, funcionando como um alento de vida, mas quando a tarde anunciar a partida, esta angústia que resulta da perda da tua presença há-de vir de novo em visita e arrastar-me para esta viagem pelo mundo do silêncio.

NOTAS POLÍTICAS


Mário Martins




Os filósofos apenas interpretaram o mundo de várias maneiras, mas o que importa é transformá-lo”


Karl Marx



1. Cento e quarenta e cinco anos depois desta frase revoluconária de Marx, era altura, com a queda do muro de Berlim, de voltar a interpretar o mundo, mas é penoso reconhecer que mais de vinte anos passados sobre as ruínas do socialismo real não produziram uma única ideia.


2. O maior banco de investimento do mundo, o norte-americano Goldman Sachs, foi galardoado com o “prémio da vergonha”, “por alimentar os lucros de uma minoria rica através de enormes desigualdades e do empobrecimento de grandes segmentos da população” e “por os seus dirigentes ocuparem, alternadamente, cargos no banco e cargos públicos ou políticos, garantindo os negócios de amanhã”. "Sou um banqueiro a fazer o trabalho de Deus", diz o seu presidente.

3. Sabe-se, maioritariamente, o que não se quer, seja a ditadura socialista seja este capitalismo financeiro que capturou os estados e caricatura a democracia. Mas isto não é uma teoria política e, muito menos, um programa de governo.

4. A chamada crise mundial que estamos aviver é, antes, uma grave crise dos Estados Unidos e da União Europeia, com origem imediata no desregramento financeiro do(s) mercado(s) e razões mais fundas na transferência maciça de investimentos para a Ásia e na liberalização do comércio mundial. Como “Deus escreve direito por linhas tortas”, o resultado é um certo reequilíbrio económico e social do mundo - lembremo-nos que só na China e na Índia vive cerca de um terço da humanidade -, embora à custa da descida do nível de vida da maioria da população ocidental.


5. Em Portugal, o diagnóstico de Medina Carreira parece-me, em geral, certo, nomeadamente quando afirma que não existe uma verdadeira democracia porque os deputados estão por conta dos chefes partidários e que foram opções de investimento incorrectas e uma política irresponsável de despesismo que conduziram o país à actual situação. Mas acho que Medina Carreira erra quando desvaloriza a Constituição e critica as decisões do Tribunal Constitucional, alegando a falta de dinheiro nos cofres do estado. A meu ver, do que trata a Constituição é da distribuição da riqueza e dos sacrifícios, sejam eles quais forem; como bem escreveu Jorge Sampaio, a Constituição, por mais revista que seja, não pode deixar de consagrar os princípios da igualdade e da proporção; direi mesmo que, por absurdo, se a Constituição não os consagrasse, estes são princípios que devem sempre nortear quem governa. E como é difícil traduzir esses princípios em fórmulas matemáticas objectivas que possam aplicar-se casuisticamente, então é necessário e razoável recorrer à ponderação de um Tribunal para julgar a constitucionalidade dos actos legislativos e governativos.

6. A novidade política está bloqueada em Portugal, mas não só pelo facto de, neste momento, estarmos sob tutela estrangeira. É o que se infere da afirmação do Bloco de Esquerda (decerto acompanhado pelo Partido Comunista) de que é preciso um governo de esquerda mas que não fará acordos com o Partido Socialista, por este estar com um pé nomemorando da troika. O resultado óbvio deste posicionamento “de esquerda” será mais um governo saído do “bloco central dos interesses” que o eleitorado conhece há muitos anos, tanto mais que a actual maioria continua, espantosamente, a liderar as últimas sondagens (já que continuam a não ser somáveis as intenções de voto no Partido Socialista e nos partidos à sua esquerda).

7. Não está à vista o momento em que os partidos à esquerda do Partido Socialista tirarão as devidas consequências do facto de em todas as eleições legislativas realizadas desde 1976, não arrecadarem, em conjunto, mais de 18% dos votos e de, mesmo na crise sem precedentes que atravessamos, não irem além de 20% nas sondagens. Não vêem, ou fingem que não vêem, que há um problema de falta de confiança por parte da grande maioria do povo, de cujos interesses se afirmam os grandes paladinos.


8. Está adquirido que não existe democracia sem a liberdade de existência de partidos políticos, porém é claro hoje que os partidos são parte do problema; chamemos-lhe o problema da falsa representação: o ponto é que raramente existe uma correspondência entre a vontade da maioria do povo e a acção política dos representantes que elege. São vários os factores que distorcem essa correspondência: o monopólio dos partidos, a eleição de partidos em vez de candidatos (salvo os chefes), a dependência dos representantes das direcções partidárias, o financiamento dos partidos e a sedução de políticos do “arco governativo” pelos interesses económicos. Por tudo isto eu prefiro chamar à democracia portuguesa uma partidocracia.

9. Se a apropriação da democracia pelos partidos a desvirtua, a intervenção mais ou menos espontânea e inorgânica dos cidadãos, - embora salutar e capaz de provocar um recuo do poder quanto a uma questão política concreta qualquer, como foi o caso da grande manifestação de 15 de Setembro passado -, não é, por si só, uma alternativa.

10. No seu conciso mas estimulante artigo ,publicado no último número, o António Mesquita, depois de afirmar que “a democracia directa está fora de questão porque redunda sempre em tirania” (afirmação algo obscura uma vez que não descortino exemplos históricos de exercício pleno desse tipo de democracia), reduz, não sem razão, a democracia (representativa) a quase nada ao considerar que um poder inteligente (seria talvez mais apropriado apelidá-lo de manhoso…) escapará sempre “às veleidades de controlo”. Se o que subjaz ao regime político concreto da democracia é a liberdade e igualdade política, não de cidadãos ideais, mas de todos os cidadãos concretos, sejam eles ricos ou pobres, letrados ou analfabetos, bem ou mal informados, não deixa de ser uma amarga ironia que a grande maioria prefira o quotidiano e o lazer à política.


11. Os partidos têm um “calcanhar deAquiles” que é o de terem de ganhar a opinião pública e os votos para chegarem ao poder e lá se manterem. Por sua vez, os cidadãos eleitores têm novos meios e espaços de liberdade de acesso à informação e de comunicação e intervenção. Talvez haja aqui uma possibilidade de animar a vida política informal e de elevar a opinião pública a um patamar mais exigente, a fim de influenciar a linha editorial dos meios tradicionais de comunicação de massa e a acção dos partidos.

12. A Chanceler alemã declarou que é tempo de acabarem os paraísos fiscais. Se a afirmação não for apenas eleitoralista talvez marque o desejável regresso da política e da soberania dos estados.

13. Depois de o Primeiro Ministro inglês ameaçar a União Europeia com um referendo, o Presidente Obama convidou a União Europeia a constituir, com os Estados Unidos, um mercado único. Isso será bom ou mau, mas será, com certeza, a anglo-americanização do projecto político da União Europeia.


14. Vivemos, em conclusão, dentro de uma mão-cheia de paradoxos:


· Não há democracia sem partidos, mas os partidos são um problema na democracia;

· A acção política dos partidos organizados é insatisfatória, mas a intervenção inorgânica dos cidadãos é insuficiente;

· A economia estatizada, sem concorrência, não funciona, mas a economia de mercado, sem a regulação do estado, gera desigualdade e conduz à depressão;

· O que deu origem à crise infecto-contagiosa dos Estados Unidos foi a não intervenção do estado, mas o discurso dominante, nomeadamente em Portugal, continua a identificar o estado como a origem de todos os males;

· Não sabemos o que fazer, mas é preciso passar à acção.

Ficaria satisfeito se estas notas abrissem um profícuo debate, aberto aos leitores, nestas páginas algo mornas da Periscópio.

PARA JÁ, VOU PARA A RUA!

Mário Faria

 

 

1) Ser e ter : ambos se conjugam para que, relativamente à actual situação política, social e económica, me situe num plano de oposição total ao governo e ao modelo que o sustenta. Tenho cultura de esquerda, sou amigo da liberdade, defendo a iniciativa privada, a regulação e sofro todos os dias os mais vis ataques, através dos impostos que aplicam às minhas pertenças. Não escamoteio que, hoje, a minha posição não é apenas de solidariedade para com os que (mais) sofrem, mas também é (e muito) de repúdio pelo esbulho a que me sujeita diariamente o fisco deste país, sem qualquer sinal de retorno. Nem uma luzinha ao fundo do túnel. Essa revolta que sinto não é cega: obriga-me a estar mais atento, a querer perceber as causas e compreender os efeitos para que a emoção não contenha a necessidade do saber que alimenta a razão. Tento conhecer as narrativas dominantes, não responsabilizo os partidos como únicos responsáveis pela actual crise, pesquiso e ajo como um cidadão preocupado, mas continuo sem certezas e com a convicção que o pior ainda está para vir. A crise sistémica do modelo capitalista vai produzir efeitos globais nocivos e devastadores no chamado mundo ocidental.

2) “O sistema capitalista, actual, cumpriu a sua função e já se encontra praticamente esgotado. A crise das hipotecas de alto risco, ou subprime, os níveis descontrolados a que se deixou chegar a economia financeira, os montantes de dívida privada já incomportável a todos os níveis, a crescente produtividade que já está a tornar excedentários amplos sectores da sociedade, os progressos de uma tecnologia cada vez mais eficiente não são mais do que manifestações do esgotamento do sistema. A (crise) de 2010 não será uma crise conjuntural à semelhança da de 1962, 1987, 1991 ou 2000, mas sim uma crise sistémica, porque pressuporá mudanças na forma como as coisas são feitas, ou seja, no modo de produção, tal como pressupôs o crash de 1929.”

3) Seguramente que investimos demasiado no cimento e no asfalto, que nos endividámos demasiado com obras faraónicas, que as empresas públicas sorveram demasiados fundos, mas a obra está cá, é nossa e serve para uso público ou privado. Não podemos dizer o mesmo do capital. 1) Todos os dias saem 5,4 milhões de euros de capitais com destino aos paraísos fiscais, de acordo com dados do Banco de Portugal; 2) É uma fuga recorde de capital estrangeiro para fora de Portugal, de 32,4 mil milhões de euros, nos primeiros noves meses do ano; 3) Os valores são de facto impressionantes, no final de 2009 estavam parqueados nos ditos off-shores, puros e duros, 16 123 milhões de euros, cerca de 10% do PIB. Valor que sobe para 65 mil milhões de euros (cerca de 40% do PIB) se incluir, esses outros paraísos fiscais que são a Holanda, o Luxemburgo, a Irlanda e a Suíça. Hoje, dois anos depois e conhecidas que são as movimentações de capitais registadas nos últimos tempos, nomeadamente para a Holanda, não andaremos longe de um valor próximo de 75 mil milhões de euros parqueados nestes ditos paraísos fiscais (prox. 50% do PIB) ; 4) O Governo perde todos os anos mais de 12 mil milhões de euros em fuga aos impostos, o triplo daquilo que pretende cortar na despesa pública em dois anos (2013 e 2014), mostra um estudo independente da consultora britânica Richard Murphy FCA, elaborado para o grupo Aliança Progressista de Socialistas e Democratas do Parlamento Europeu.

Como reter o capital para investir na economia : eis a questão. Seguir o dinheiro, combater o primado dos “mercados” e não permitir que a política se subordine a ser amiga dessa “entidade tão difusa”, forte e reverenciada que nem os deuses. Não conheço a resposta para combater a crise, mas o caminho faz-se caminhando. No quadro actual, passa por resistir e participar activamente nos movimentos que lutam contra o sistema capitalista e a política terrorista dos ditos mercados, que ofendem os direitos humanos e põem em causa o estado social. Sem dogmatismos, é um legado que temos de defender. A iniciativa privada deve ser o motor da economia, mas não devemos permitir que a propriedade comande a vida e estabeleça os limites da liberdade.

Depois destas notas feitas de revolta e menos de critério de quem não sabe o que fazer de imediato, a não ser que vai cantar o “Grândola” até que a voz lhe doa, com os camaradas e companheiros que estiverem na luta, aproveito para brevemente responder à sugestão do Mário Martins com os seguintes comentários:

* A organização dos partidos tende a desfavorecer a proximidade ao cidadão, esgotando-a no processo eleitoral, mas não vejo como o sistema de representação os possa dispensar;

* A intervenção dos cidadãos é fundamental para que as forças organizadas se ponham em linha com as suas reivindicações e não se fechem sobre as suas certezas. Porém um Grillo, por muito bem que cante, não faz a primavera;

* O capitalismo é avesso da regulação, que apenas lhe serve para responsabilizar os seus desmandos. O primado do capitalismo enaltece o individualismo e combate qualquer intromissão do Estado, ainda que bondosa. Não há razões sustentadas, em termos de interesse público, para que não se combata as offshores ou se aceite a taxa Tobin. Mas acontece, talvez porque não haja uma corrente política suficientemente forte para combater os excessos do sistema;

* O gigantismo das estruturas do estado, o amiguismo, as práticas obsoletas, o excesso de burocracia, o facto do pagamento dos impostos corresponder para muitos cidadãos uma espécie de seguro de cobertura ilimitada e contra todos os riscos e, sobretudo, a corrupção e o tráfico de influências, ao nível do aparelho de estado, são pecados mortais para a credibilidade dessa entidade a que genericamente chamamos de “Estado”. O “mundo das empresas”, como a lua, sabe esconder o seu lado mais negro e ilumina apenas o que lhe convém. A democracia acaba onde começa a propriedade privada. Esta visão está enraizada na sociedade ocidental e é uma ideia formatada pelos poderes dominantes.

* Como podemos agir se não sabemos o que fazer ? Pela minha parte, não tenho dúvidas que a “austeridade”, não tendo resolvido nem o problema do défice nem o da dívida, bem pelo contrário, ficou irremediavelmente comprometida porque é um desastre no presente e uma ameaça ao futuro da grande maioria dos portugueses. Fico aliado de todos que a criticam e receptivo a todas as acções dos que a combatam: cidadãos indignados, partidos da oposição e sindicatos. Tenho de aproveitar o que tenho à mão. Desta vez, vou para a rua e já no próximo 2 de Março.

 

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