Alcino Silva
Aproximam-se de mim quase em silêncio e falam-me com delicadeza. É já a terceira vez que se chegam até junto da mesa onde me encontro no canto mais longínquo da sala. De certa forma segredam-me que o Café vai fechar e tenho de fazer o favor de sair. É um daqueles Cafés de bairro, barulhento e com pouca luz e neste momento já não tem clientes, restando apenas eu com os meus papéis e este lápis com que desenho letras, vagarosas e pensadas. Sentei-me aqui há várias horas e não fui capaz de sair. Está frio, sinto um frio intenso que me abraça, me envolve, me prende, viaja pelo interior dos meus braços e imobiliza-me os músculos e a noite fica ainda mais negra com este frio que me desgasta. Desde que soube que não voltavas, todos os dias me perco nessa incapacidade de regressar. Não, não me disseste que não vinhas mais, pressagio-o com esse instinto que possuímos de pressentir quando perdemos algo que nos é muito estimado. É verdade que só aparecias de tempos a tempos e, em certas ocasiões, estavas até muito tempo sem vir, mas sabia que haveria um dia que aquele telefonema ou mensagem que me chamava havia de surgir. Mas desta vez passou já tempo demasiado e sinto pelas gaivotas que esvoaçam em voos tranquilos que não voltarás. A cada tarde, quando o tempo em que o sol viaja por nós se aproxima do fim, vagueio, por aqui e por ali, olhando as pessoas mas não as vendo, tentando adivinhar-lhes os sonhos, os pensamentos, reconstruo-lhes vidas e caminhos. Não consigo regressar ao local onde sempre te esperava Mariamar, logo após receber a tua mensagem. Há uma incapacidade diária em sobreviver ao desaparecimento do sol. Caminho, normalmente sem destino pelas pequenas cidades dos arredores. Não procuro nada, talvez apenas o consolo para essa mágoa da ausência, dessa que magoa que nos comprime e nos fecha as estradas. Vagueio por ruas desconhecidas, sem destino e sem rumo, perco-me entre gentes, entre casas e lugares que não conheço e vou recordando os tempos que chegavas com esse teu silêncio escondido num sorriso que me desarmava. Escutava-te mesmo quando não falavas e gostava de ver os teus olhos procurar o sol a descer sobre o mar e a contares as estrelas que viajam no céu. Olhava apenas, nessa delícia que é admirarmos as pessoas belas e cuja presença nos traz esse conforto que nos aquece a alma. Na minha imaginação acolhia a tua cabeça entre os meus braços e afagava-te os cabelos num gesto de ternura. Eram tardes bonitas essas que se prolongavam pela noite que nos encontrou tantas vezes junto ao mar naquele sossego que resultava da tua presença calada. Por mim, ficava nessa companhia que procuravas onde dizias encontrar repouso para alguns momentos em que desejavas sair dessa corrente quotidiana onde vivias. Hoje, este Café donde vou sair após estas insistências, é apenas um refúgio como outros que encontro nos restantes dias que me levam por aí, apenas em lembranças de gestos que recordo com muito carinho, essa ternura que sentia sempre com a tua chegada. Vinhas até à praia sem hora certa e sem uma cadência que se conhecesse, mas quase decifrava quando podias chegar e a cada uma das tuas visitas, gravei-te o rosto, as expressões, os olhos, esse teu olhar que me aliciava de forma tão especial, o teu andar e os teus gestos. Quando partias de regresso à tua vida, ficava com todas essas imagens e com a voz. Já não estavas e ainda te ouvia, naquelas palavras pausadas que saíam em sons soltos e alegres. Por vezes, entro num transporte e vou olhando, para um, para outro, para este ou para aquele. Em certos momentos, surge uma mulher e um aspecto ou outro, chamam-me a atenção, mas quase logo percebo que não és tu. Ainda deixo os olhos presos no rosto da jovem mulher como se essa atitude a pudesse transformar em quem procuro, mas é inútil. Há uma luz intensa na composição, mas para mim só chega o negro da noite que se sente no exterior e que me abraça logo que deixo aquelas portas e recomeço o meu caminhar. Então, o frio que me agasalha, sim, pois é tão intenso que já não sei se vem do exterior ou do interior de mim, creio mesmo que habita no mais profundo do meu corpo, faz-se de novo notar, manifesta a sua presença como dono e senhor dos meus passos. Não chego a perceber o cansaço, só mais tarde o pressinto, mas sem tomar verdadeira consciência da sua presença. Em certos momentos e quando o escuro nocturno é mais premente, acendo uma espécie de luz e coloco-te no centro desse brilho e chego a sorrir como se me tivesses aparecido, mas quase logo, algo apaga essa luminosidade e tu regressas ao abrigo da minha memória. Tu és muito bonita, Mariamar. Nunca te cheguei a dizer verdadeiramente, mas tu sabia-lo, certamente que sim, pois os meus olhos não te podiam enganar e ver-te era como se alimentasse a alma, essa parte de nós que nos faz ter alento para os momentos mais agrestes. Por isso, as tuas vindas àqueles encontros de silêncio eram a parte mais importante da vida que levava. Para mim, o tempo media-se entre esses espaços em que ias e vinhas, entre a tua mensagem de chegada e a tua partida no momento em que te despedias com aquelas palavras tão simples mas para mim tão ternas. Em certos momentos da noite, ainda olho para o céu na procura das estrelas, aquelas que contavas e juntavas em grupos formando constelações, só que agora parecem apagadas. Certamente o brilho que via no céu não vinha das estrelas, mas antes eram os teus olhos que as acendiam e como não estás, para mim, aparecem apagadas. O espaço celeste não voltará a ser o mesmo depois da tua ausência. Nestes Cafés, sento-me em escritas de cartas imaginárias para um endereço que criei na memória para ti. Digo-te tudo aquilo que nunca fui capaz de to dizer nesses encontros em que apenas te escutava. Escrevo, páginas sobre páginas num diálogo em que escolho as palavras para te contar os caminhos do meu pensamento e como os pássaros da manhã pousavam para te levar mensagens que escrevia em noites em que o sono não chegava. Agora que o Café encerrou as suas portas e estou de novo nestas ruas sem nome e já sem gente, procuro descobrir onde me encontro para esse último caminhar até ao lugar onde me escondo do pensamento. Resisto um pouco nestes instantes. É como se a noite me trouxesse algum repouso. Será, porventura, o cansaço a pesar nos meus passos. O frio que não deixou de me acompanhar, retorna com mais intensidade, açoita-me o rosto, como se sentisse este isolamento mais pesado e mais só. O amanhecer alivia-me, funcionando como um alento de vida, mas quando a tarde anunciar a partida, esta angústia que resulta da perda da tua presença há-de vir de novo em visita e arrastar-me para esta viagem pelo mundo do silêncio.
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