Mário Martins
“Os filósofos apenas interpretaram o mundo de várias maneiras, mas o que importa é transformá-lo”
Karl Marx
1. Cento e quarenta e cinco anos depois desta frase revoluconária de Marx, era altura, com a queda do muro de Berlim, de voltar a interpretar o mundo, mas é penoso reconhecer que mais de vinte anos passados sobre as ruínas do socialismo real não produziram uma única ideia.
2. O maior banco de investimento do mundo, o norte-americano Goldman Sachs, foi galardoado com o “prémio da vergonha”, “por alimentar os lucros de uma minoria rica através de enormes desigualdades e do empobrecimento de grandes segmentos da população” e “por os seus dirigentes ocuparem, alternadamente, cargos no banco e cargos públicos ou políticos, garantindo os negócios de amanhã”. "Sou um banqueiro a fazer o trabalho de Deus", diz o seu presidente.
3. Sabe-se, maioritariamente, o que não se quer, seja a ditadura socialista seja este capitalismo financeiro que capturou os estados e caricatura a democracia. Mas isto não é uma teoria política e, muito menos, um programa de governo.
4. A chamada crise mundial que estamos aviver é, antes, uma grave crise dos Estados Unidos e da União Europeia, com origem imediata no desregramento financeiro do(s) mercado(s) e razões mais fundas na transferência maciça de investimentos para a Ásia e na liberalização do comércio mundial. Como “Deus escreve direito por linhas tortas”, o resultado é um certo reequilíbrio económico e social do mundo - lembremo-nos que só na China e na Índia vive cerca de um terço da humanidade -, embora à custa da descida do nível de vida da maioria da população ocidental.
5. Em Portugal, o diagnóstico de Medina Carreira parece-me, em geral, certo, nomeadamente quando afirma que não existe uma verdadeira democracia porque os deputados estão por conta dos chefes partidários e que foram opções de investimento incorrectas e uma política irresponsável de despesismo que conduziram o país à actual situação. Mas acho que Medina Carreira erra quando desvaloriza a Constituição e critica as decisões do Tribunal Constitucional, alegando a falta de dinheiro nos cofres do estado. A meu ver, do que trata a Constituição é da distribuição da riqueza e dos sacrifícios, sejam eles quais forem; como bem escreveu Jorge Sampaio, a Constituição, por mais revista que seja, não pode deixar de consagrar os princípios da igualdade e da proporção; direi mesmo que, por absurdo, se a Constituição não os consagrasse, estes são princípios que devem sempre nortear quem governa. E como é difícil traduzir esses princípios em fórmulas matemáticas objectivas que possam aplicar-se casuisticamente, então é necessário e razoável recorrer à ponderação de um Tribunal para julgar a constitucionalidade dos actos legislativos e governativos.
6. A novidade política está bloqueada em Portugal, mas não só pelo facto de, neste momento, estarmos sob tutela estrangeira. É o que se infere da afirmação do Bloco de Esquerda (decerto acompanhado pelo Partido Comunista) de que é preciso um governo de esquerda mas que não fará acordos com o Partido Socialista, por este estar com um pé nomemorando da troika. O resultado óbvio deste posicionamento “de esquerda” será mais um governo saído do “bloco central dos interesses” que o eleitorado conhece há muitos anos, tanto mais que a actual maioria continua, espantosamente, a liderar as últimas sondagens (já que continuam a não ser somáveis as intenções de voto no Partido Socialista e nos partidos à sua esquerda).
7. Não está à vista o momento em que os partidos à esquerda do Partido Socialista tirarão as devidas consequências do facto de em todas as eleições legislativas realizadas desde 1976, não arrecadarem, em conjunto, mais de 18% dos votos e de, mesmo na crise sem precedentes que atravessamos, não irem além de 20% nas sondagens. Não vêem, ou fingem que não vêem, que há um problema de falta de confiança por parte da grande maioria do povo, de cujos interesses se afirmam os grandes paladinos.
8. Está adquirido que não existe democracia sem a liberdade de existência de partidos políticos, porém é claro hoje que os partidos são parte do problema; chamemos-lhe o problema da falsa representação: o ponto é que raramente existe uma correspondência entre a vontade da maioria do povo e a acção política dos representantes que elege. São vários os factores que distorcem essa correspondência: o monopólio dos partidos, a eleição de partidos em vez de candidatos (salvo os chefes), a dependência dos representantes das direcções partidárias, o financiamento dos partidos e a sedução de políticos do “arco governativo” pelos interesses económicos. Por tudo isto eu prefiro chamar à democracia portuguesa uma partidocracia.
9. Se a apropriação da democracia pelos partidos a desvirtua, a intervenção mais ou menos espontânea e inorgânica dos cidadãos, - embora salutar e capaz de provocar um recuo do poder quanto a uma questão política concreta qualquer, como foi o caso da grande manifestação de 15 de Setembro passado -, não é, por si só, uma alternativa.
10. No seu conciso mas estimulante artigo ,publicado no último número, o António Mesquita, depois de afirmar que “a democracia directa está fora de questão porque redunda sempre em tirania” (afirmação algo obscura uma vez que não descortino exemplos históricos de exercício pleno desse tipo de democracia), reduz, não sem razão, a democracia (representativa) a quase nada ao considerar que um poder inteligente (seria talvez mais apropriado apelidá-lo de manhoso…) escapará sempre “às veleidades de controlo”. Se o que subjaz ao regime político concreto da democracia é a liberdade e igualdade política, não de cidadãos ideais, mas de todos os cidadãos concretos, sejam eles ricos ou pobres, letrados ou analfabetos, bem ou mal informados, não deixa de ser uma amarga ironia que a grande maioria prefira o quotidiano e o lazer à política.
11. Os partidos têm um “calcanhar deAquiles” que é o de terem de ganhar a opinião pública e os votos para chegarem ao poder e lá se manterem. Por sua vez, os cidadãos eleitores têm novos meios e espaços de liberdade de acesso à informação e de comunicação e intervenção. Talvez haja aqui uma possibilidade de animar a vida política informal e de elevar a opinião pública a um patamar mais exigente, a fim de influenciar a linha editorial dos meios tradicionais de comunicação de massa e a acção dos partidos.
12. A Chanceler alemã declarou que é tempo de acabarem os paraísos fiscais. Se a afirmação não for apenas eleitoralista talvez marque o desejável regresso da política e da soberania dos estados.
13. Depois de o Primeiro Ministro inglês ameaçar a União Europeia com um referendo, o Presidente Obama convidou a União Europeia a constituir, com os Estados Unidos, um mercado único. Isso será bom ou mau, mas será, com certeza, a anglo-americanização do projecto político da União Europeia.
14. Vivemos, em conclusão, dentro de uma mão-cheia de paradoxos:
· Não há democracia sem partidos, mas os partidos são um problema na democracia;
· A acção política dos partidos organizados é insatisfatória, mas a intervenção inorgânica dos cidadãos é insuficiente;
· A economia estatizada, sem concorrência, não funciona, mas a economia de mercado, sem a regulação do estado, gera desigualdade e conduz à depressão;
· O que deu origem à crise infecto-contagiosa dos Estados Unidos foi a não intervenção do estado, mas o discurso dominante, nomeadamente em Portugal, continua a identificar o estado como a origem de todos os males;
· Não sabemos o que fazer, mas é preciso passar à acção.
Ficaria satisfeito se estas notas abrissem um profícuo debate, aberto aos leitores, nestas páginas algo mornas da Periscópio.
Sem comentários:
Enviar um comentário