Mário Faria
Cilinha Supico Pinto |
Tive a oportunidade de ver e ouvir Isabel Jonet na SIC Notícias, mas não tomei atenção que o fazia na qualidade de Presidente dos Bancos Alimentares contra a fome, cargo que desconhecia pertencer-lhe. Pareceu-me, na altura, um discurso alinhado pelos Chicago boys cá do sítio, que arquivei sem dramatizar, pois fiquei imune a este tipo de discurso, depois de o ouvir - nas sua versões soft ou hard – quase todos os dias pela TV&Cia.
Mais do que as críticas a que foi alvo a sua intervenção, muito particularmente nas redes sociais ou em blogs, posicionados como senda da esquerda radical, a que não acedo com regularidade, anotei um variado coro de críticas aos críticos, uma mais teológicas outras mais doutrinárias, mas todas claramente alinhadas politicamente, como gato escondido com rabo de fora.
Este animado debate, motivou a pesquisa que fiz e de que retirei quatro momentos para se perceber do que falámos e da importância da discussão destes temas. Faço a apresentação, de forma aleatória e sem conotação prévia, de parte de alguns artigos que, que considero relevantes para integrar o melhor (ou o pior) da discussão . A cada um a sua verdade. A minha opinião, essa, deixo mesmo no encerramento deste artigo.
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“Por isso acho intolerável a ideologia de Isabel Jonet sobre este ponto, quando diz: «Eu sou mais adepta da caridade do que da solidariedade. A caridade é muito mais. A palavra está desvirtuada por ter uma conotação religiosa, mas para mim a caridade é a solidariedade com amor. Com entrega de si mesmo. A grande diferença é que caridade é amor e solidariedade é serviço.». Colocar os direitos, e a solidariedade organizada como meio de os fazer valer, em segundo plano face à caridade, é ideologicamente um regresso ao salazarismo. Que recuso liminarmente.” Porfírio Silva, blog ”a sala de cima”.
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“Porque a realidade actual é diferente. Mesmo as pessoas que sobrevivem a custo e que nada têm, que se podem considerar como os novos miseráveis de uma Europa que falhou nas promessas de bem estar e nas expectativas que criou, jamais voltarão a misturar-se com os animais, por muito que Merkel e a sua gente não se importassem com isso. O limiar da pobreza está hoje mais acima.
Quem vive além das suas possibilidades e vai ter de mudar de hábitos é certa classe média deslumbrada que se deixou levar pela febre consumista e pela inveja social, sem se esforçar por gerar os proventos que lhe permitam recorrer à necessidade de adquirir para ser. São esses que não vão poder comer bife todos os dias e que terão de fechar a torneira quando lavarem os dentes. Não por culpa da troika, mas pelo elefante branco da gula: comer mais do que se precisa, gastar mais do que se ganha, parecer mais do que se é.” Alexandre Pais, Record.
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“- Porque é contra a fome. Mas um banqueiro não pode ser contra o dinheiro, nem a presidente do Banco Alimentar contra a fome! Até porque a fome é necessária: as revoluções fazem-se em jejum. Com a barriga farta, não há quem proteste! Os obesos não apedrejam polícias! As sopinhas do Banco Alimentar querem dar cabo da raiva proletária, em nome da resignação cristã, mas, com conformismo, fica entornado o caldo revolucionário. É preciso ler Marx - não o Groucho ! - e aprender que o que faz falta é exasperar a malta, para que seja carne de canhão para a revolução.
- Porque é católica, o que é um insulto para a laicidade das instituições sociais. Há muito que os pobres foram nacionalizados, antes até dos bancos. Por sinal, capitães de Abril, por que raio é que o Alimentar ainda o não foi?! Já não há pobrezinhos paroquiais: agora são todos do Estado, são todos do povo, são nossos. Se a Igreja quer ter os seus próprios pobres, para promover bazares e canastas de senhoras bem, que os arranje à sua custa, mas os pobres nacionais não são de nenhuma religião, porque estão ao serviço das ambições políticas da esquerda! É que, se nos tiram os pobres, que nos resta?! Se já nem valores ou ideologia temos.”
(Manifesto de um imaginário esquerdista ululante, presidente de um não menos imaginário Banco Alimentar a Favor da Fome de autoria de Gonçalo Portocarrero de Almada, no Público)
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“Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.
Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam.
O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos…
... e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.
Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse: Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.
Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis."
(Parte de um texto de Lobo Antunes do seu Livro de Crónicas)
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Na rua onde morava, em miúdo, também tínhamos um pobre nosso : o Sr. Acácio. Era idoso, doente, humilde e muito solícito. Fazia pequenos fretes aos moradores e recebia uma semanada de 5$00, da nossa parte. Também dávamos roupa. Não durou muitos anos: a tuberculose foi mais forte que ele. Depois ficou apenas a Muda que ia todos os dias buscar pão e comida. Era assim, há mais de sessenta anos.
Do que li e vi, Isabele Jonet faz-me lembrar Cecília Supico Pinto,. cada qual com o seu registo. Num quadro histórico bem distinto, apresentam imensas semelhanças, apesar das suas diferenças políticas: a primeira uma democrata liberal e mais tecnocrata, a segunda uma figura de proa do Estado Novo e mais “tia”. Ambas têm em comum : a prestação de serviços “estimáveis” embora dirigidos a grupos bem diferenciados, e a falta de vontade política, uma para atacar a pobreza a outra para se bater contra a guerra colonial.
Concluo com algo que li a propósito da “virtude” e que cito de memória : Quando se trata de “caridade” ou de “solidariedade”, talvez fosse bom começar pela questão do “reconhecimento” : não há vínculo social equilibrado onde as pessoas não são reconhecidas no mesmo grau de dignidade.
E Bom Natal para todos !
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