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01/10/12

DE TU QUERIDA PRESENCIA

Alcino Silva






Quando mais tarde, procurou na memória a razão de terem parado naquele local, não encontrou. Tudo lhe parecia muito vago como se uma nuvem tivesse pairado sobre aquele momento e o seu pensamento mais não fosse do que uma nave a atravessar esse manto espesso de branco. Viajavam há várias horas e um certo cansaço invadia o ambiente o que fazia as conversas rarear e as frases não passarem de escassas palavras. Eram três os seus companheiros, todos jovens, dois rapazes e uma rapariga. Um dos jovens viajava no banco de trás, e a mulher, de longe a longe, voltava-se para lhe falar e então via-a de perfil. Apenas uma vez se voltou totalmente para lhe perguntar se sentia bem. Quando falava, nascia-lhe um sorriso e enviava-o com as palavras que dizia. Eram cerca de quatro horas da tarde, a hora lembrava-se pela tonalidade do sol, pois a paisagem memorizou-a toda. Lentamente, pararam e o jipe não chegou a sair totalmente da estrada. Conhecera-os em Puerto Chacabuco na noite do dia anterior quando procurava transporte para regressar à pequena cidade de Puerto Natales onde vivia. Deixara a Europa e vagueando sem rumo, deteve-se à entrada da Terra do Fogo, no sul do Chile, nesta localidade para onde tornava, capital da província Última Esperança, porque um homem deve sempre deixar uma porta entreaberta, mesmo quando um olhar impossível o leva para paragens tão longínquas. Não era uma fuga, um exílio, um esconderijo, apenas um lugar quando outros espaços não nos são permitidos. Quando os viu, pelo comportamento, percebeu que rumavam para uma direcção que lhe interessava e a eles se dirigiu perguntando se iam para sul. Partiram cedo na manhã seguinte e como por aqui acontece, não o questionaram sobre o seu destino. Acomodaram-se e abalaram. Tomaram a estrada de Puerto Ibanez para alcançar a N40 e apenas tinham detido a marcha por duas vezes, a última um pouco mais longa. Comentavam a paisagem, a beleza que a natureza oferecia e uma ocasião chegaram a parar para fotografar guanacos que se encontravam próximo da estrada. No tempo restante, o jipe rolava. Os longos meses passados na proximidade da Antártida tinham produzido em si, esse silêncio que se recolhe na alma e espreita a medo pelo olhar. Absorvia o belo das formas que se construíam e das cores que se desenhavam a cada instante do caminho. Quando o carro deteve a marcha devagar e deixou parcialmente o alcatrão, levantou os olhos e uma vez mais o pasmo paralisou-o. Era sempre assim, por aqui. Tudo é perfeito. O azul puríssimo do lago e o contraste com a brancura da cordilheira, faziam-no ouvir o sossego e aquele olhar cristalino, puro e longínquo que lhe incendiava as veias e fazia explodir o pensamento, apareceu no encanto mágico do horizonte. Com excepção dos olhos, o corpo não se mexera, apenas a memória trabalhava na procura daqueles focos de luz onde viviam mares eternos e se escondiam as cores do universo. Foi então que se recordou do comandante, de Che Guevara. Porque lhe acudiu à memória em momento esteticamente tão raro, não soube responder. Talvez a pátria desse revolucionário romântico, ou a pureza dos sentimentos, ou ainda o sonho que nele viajava de construção de um mundo de homens livres. Foi a canção, o poema que lhe foi dedicado como despedida, após esse fatídico dia na selva andina, esse cântico expressado com tanto sentimento pela bonita Nathalie Cardone. Esta francesa não se limitou a cantar, fê-lo com a manifestação das palavras, mas também, das mãos e do rosto. Lembra-se porém de naquele instante em que observou o fascínio do azul do Lago Argentino sair-lhe da garganta em canto reprimido, as palavras do poema, quando diz, de tu querida presencia, mas a melodia estava a levá-lo em viagem de regresso a esses olhos onde viviam sonhos infinitos e gestos feiticeiros. Há uma semana atrás deixara a casa austral de azul vivo onde vivia e a pequena janela voltada para a baía, através da qual sonhava e via o dia desistir e os poentes cobrirem-se de espantosos vermelhos. Viajara para norte até à praia onde o poeta pousava os sonhos no Pacífico e lembrava as mulheres amadas. Deambulou durante dois dias pelo areal, declamando alto, escutado apenas pelas ondas oceânicas, os poemas construídos pelo amor infinito a Albertina e a Matilde e a todas as mulheres que enfeitiçam os homens com a beleza irrepetível e intemporal de olhares onde se escondem as quimeras perseguidas por aqueles que aprenderam a amar. Não derrotou os fantasmas, mas confortou a alma. A descida pelo canal de Moraleda e pelo fiorde Aysen, retira a respiração a qualquer ser humano. Os olhos perdem-se e a natureza confunde-se com a fantasia. Imobilizado, sentiu-se como nos tempos passados em que um olhar de mulher lhe estonteava o andar e as mãos erguiam-se na busca de equilíbrio. Há lugares da natureza que deveriam ser de visita obrigatória para que todos pudessem viver essa passagem de fronteira entre o real e o imaginário e o sentido de beleza não mais se afastasse dos gestos e transformasse a vida em momentos de afecto. Estava ainda neste êxtase quando sem motivo aparente o jipe parou na margem do lago, por uma razão que não chegou a conhecer e que acabou por o deixar pousado em cima do nada, sentindo-se senhor do mundo cavalgando carros de combate inventados. Sobre a pureza do azul da água, viu o comandante lendário, escutou o poema de adeus, navegou por mares desconhecidos em caravelas empurradas pelo vento de um olhar inesquecível. Hoje lembrou-se. Atravessou a baía ouvindo a pá dos remos mergulhando nas águas caladas do estreito. Sobre si, o ilimitado universo estendia-se como uma avenida de estrelas. Desembarcou sem cansaço e caminhou contornando o farol. Na noite de natal recolhia-se na ilha Madalena e aconchegava o sono junto aos leais pinguins. Foi quando já estava deitado, nesse limbo em que os olhos se encerram e o pensamento ainda segue viagem que se recordou daquela paragem na proximidade do lago. Um sorriso ainda teve tempo de nascer nos lábios já adormecidos e de novo baixinho como naquela tarde longínqua, cantou, de tu querida presencia. Afinal as estrelas eram apenas olhares, um único olhar, multiplicado pela beleza das noites austrais. 





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