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01/04/12

MUROS RELIGIOSOS (10) O Confucionismo

Mário Martins

Confúcio ensinando, retratado por Wu Daozi, Dinastia Tang (618-907) - Wikipédia


“É isto religião ou filosofia? Antes será, entre as duas, uma espécie de religião da cultura humanista ou de doutrina filosófica da santidade, coisa que o confucionismo sempre foi, e a que o novo confucionismo tenta devolver uma forma nova, que talvez o futuro venha a desenvolver como a resposta chinesa ao veredicto atribuído a Malraux: «O século XXI será religioso, ou não será.»”

Léon Vandermeersch


Se, para nossa estranheza, as religiões chinesas como o Tauismo (abordado no número anterior) são, teologicamente, tão diferentes das religiões do Livro, também não será propriamente familiar um ismo (fundado por Confúcio) que apesar de ter surgido, perante aquelas religiões, também como uma religião, se situará, visto de fora, algures entre religião e filosofia.

Para começar (…) a palavra (confucionismo) não existe em chinês. Foi forjada no século XVII pelos missionários europeus segundo o modelo dos nomes que designam as religiões a partir do nome ou da denominação do respectivo fundador (…), o que, neste caso, não é muito pertinente, uma vez que Confúcio não foi propriamente o fundador de uma religião.

A obra a que Confúcio consagrou a sua vida (541-479 antes da nossa era) consistiu em salvar o essencial da tradição chinesa, na sua época já mais que milenária, da perdição de que a ameaçavam as profundas transformações políticas e sociais então resultantes do aparecimento de alguns grandes Estados independentes sobre as ruínas da antiga realeza feudal. Apesar do seu fracasso pessoal junto dos poderosos, que não aceitaram por aí além os seus conselhos, ele triunfou graças a uma pregação pública que, essa sim, rapidamente se caracterizou por um imenso êxito, com a qual consolidou poderosamente as bases da cultura tradicional chinesa, sistematizando os seus alicerces escriturísticos. Esta sistematização consistiu em seleccionar e classificar os textos mais significativos de entre os documentos de toda a espécie que recheavam os arquivos oficiais do reino e dos senhorios (…). Por fim, no princípio dos Song (fins do século X), acabou por fixar-se em treze o conjunto dos cânones que constituem a base escriturística daquilo a que os missionários chamaram confucionismo.

Este corpus não possui qualquer fundamento religioso. Embora na tradição chinesa seja venerado e respeitado na sua letra quase tanto como a Tora, os Evangelhos ou o Alcorão, respectivamente em cada uma das grandes religiões do Livro, nunca na China foi considerado proveniente de uma revelação divina (…). Se lá encontramos a codificação e a explicação das práticas religiosas correntes na China antiga, tal acontece do ponto de vista da ordem político-social que essas práticas reforçavam, a qual, em última análise, é o objecto único dos textos canónicos (…). Por isso é que, onde os Ocidentais falam de “confucionismo”, os Chineses utilizam uma expressão de conotação muito mais lata, a de “cultura letrada” (ruxue) (…).

(…) Nem por isso é menos certo que o confucionismo está profundamente apegado a práticas que, em geral, são a manifestação por excelência do espírito religioso: as práticas cultuais. Antes de mais, culto dos antepassados, ainda hoje extremamente vivo em todas as sociedades outrora confucionizadas; mas também, nesse tempo, o culto do Céu, reservado ao imperador e que por conseguinte se extinguiu com o império; e, além disso, cultos prestados a entidades sobrenaturais de toda a espécie: génios locais, deuses do lar e de diversas partes da casa, espíritos de grandes homens defuntos (nomeadamente Confúcio), etc. Contudo até os cultos são encarados do ponto de vista social. O que lhes está na base não é a relação do homem com o divino analisada teologicamente, mas o bom efeito que têm no comportamento moral dos homens, socialmente verificado. (…) Os cultos búdicos e tauistas podem integrar-se nas práticas confucionistas sem chocar ninguém, desde que não sejam sectários, o que desde logo os tornaria condenáveis como dissolutos porque atacariam a homogeneidade da sociedade. É o que melhor explicita que a tradição canónica em que o confucionismo se apoia é uma tradição sem teologia (…).

O confucionismo (…) aliena completamente do culto qualquer consideração de sobrenatural, de transcendência; sem que por isso (…) a prática cultual enfraqueça minimamente. (…) Efectivamente (…) Confúcio ensina (…) que é preciso que as pessoas se preocupem com o culto, não do ponto de vista do serviço dos espíritos, mas do ponto de vista do serviço dos homens. Por outras palavras, o confucionismo desenraíza o culto da teologia para o reenraízar naquilo a que poderia chamar-se uma antropologia. (…) Por esse lado, o confucionismo distingue-se radicalmente do que na tradição ocidental são as correntes agnósticas. Longe de rejeitar a religião, recolhe dela, pelo contrário, a sua prática, mas desviando-lhe a finalidade da ordem teológica para a ordem antropológica (…). Este desvio, opera-o o confucionismo reduzindo a religião aos seus ritos. Os ritos estão no centro do confucionismo (…). A teoria confucionista dos ritos articula-se segundo três princípios.

O primeiro é que os ritos, actos puramente formais, constituem formas vazias nas quais basta verter, por assim dizer, os comportamentos reais, para que estes se achem “ipso facto” dirigidos no bom sentido. (…) Os ritos são os sapatos do comportamento moral, que fazem caminhar para o bem sem entorses (…). Contudo, e este é o segundo princípio da teoria, não pode haver rito válido, rito eficaz, se o seu cumprimento não for sincero (…). Quanto ao terceiro princípio, consiste em que os ritos têm uma acção propriamente santificadora: eles transformam o sujeito moral, predispondo-o a agir espontaneamente no sentido do bem. É o que faz a superioridade dos ritos sobre a lei, uma vez que os primeiros, dizem os autores, actuam por antecipação sobre o comportamento para prevenir os seus desvios e a segunda apenas pode sancionar os desvios depois de cometidos (…).

(…) A doutrina (confucionista) funde-se em toda a cultura tradicional chinesa; a sua organização não inclui qualquer aparelho próprio: nem igreja, nem mosteiro, nem congregação nem sacerdotes; assenta apenas nos aparelhos que a sociedade segregou para si mesma: o da família, o das comunidades constituídas, o do Estado.

O confucionismo antigo não tem metafísica. Como a reflexão metafísica parte de uma reconceptualização filosófica do discurso teológico, a tradição canónica original, não possuindo este, permaneceu, por consequência desprovida daquela (…). Contudo, a introdução do budismo vai abrir para a especulação de novas perspectivas (…). A reinterpretação metafísica do confucionismo toma corpo na filosofia da escola dita da “Razão (das coisas)” (li), que a sinologia ocidental tomou o hábito de designar pelo nome de neoconfucionismo (…). O nome chinês desta escola vem do facto de ela basear toda a existência numa projecção transfenomenal (que está para lá do fenómeno ou da experiência sensível) da razão - mas da razão no sentido chinês de racionalidade inerente às próprias coisas, e não da razão no sentido ocidental, de “logos” utilizado pelo espírito -, projecção transfenomenal muitas vezes designada pelo nome de “Razão do Céu” (…). Nesta filosofia, as formas fenoménicas (…) apenas existem graças à Razão do Céu transfenomenal (…), concebida desde sempre pelos Chineses como oriunda de uma espécie de éter primordial (yuanqi), cujo nome, qi, significa propriamente “sopro” (…).

No confucionismo antigo a ordem da sociedade, a ordem moral, assentava cosmologicamente pela sua homogeneidade na ordem da natureza física (…). Passando ao plano metafísico, o neoconfucionismo baseia a lei moral na transcendência ontológica (relativa ao ser) da Razão do Céu.

Sem deixar de levar a crédito da tradição cristã o reconhecimento dos valores dos direitos do homem, da liberdade e da democracia - valores universais a integrar no confucionismo de hoje -, os novos confucionistas consideram que o Ocidente pós-cristão reduziu esses valores ao estado de simples ingredientes de filosofia política, já não bastando para neutralizar as desmesuras do espírito faustiano, como lhe chamam, que se apoderou da civilização avançada. Para eles, não pode haver valores realmente indutores de progresso moral a não ser que possuam subjacente uma polaridade metafísica. (…) A seu ver, a metaética neoconfucionista, porque radicalmente isenta de teologia e, por esse facto, para além das influências da crítica racionalista, pode, ainda hoje, reinterpretada de acordo com a visão do mundo que é a nossa, alimentar uma espiritualidade que mantenha o desenvolvimento da civilização no sentido do aperfeiçoamento do homem.


Todas as citações (em itálico) são da obra “As grandes religiões do mundo”, Léon Vandermeersch, Direcção de Jean Delumeau, 1993, Editorial Presença, 2002.

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