Alcino
Silva
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Com as mãos tudo se faz e se desfaz
Com as mãos se rasga o mar
De mãos é cada flor cada cidade
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.
Manuel Alegre
A conversa acontecia
à sua volta. Uma vez ou outra entrava na roda das palavras, mas sabia que os
olhares não pousavam em si. Aceitara o convite para usufruir da companhia e
esta confortava-o daquela solidão que nos isola sem nos afastar dos outros,
permitindo-lhe a proximidade daquele olhar que viajava no seu pensamento, de
visitar aquele espaço onde habitava um sorriso que transformava os rios em
lagos de fantasia. A conversa prosseguia, ia e vinha, ora agitada e expansiva,
ora mais discreta e vaga. Contemplava e procurava a direcção dos olhares, um
pouco alheado, e foi num desses instantes que reparou no movimento das mãos e
até si chegou a recordação da memória onde vive o passado, os tempos vividos,
mas porque voltou atrás não sabia, nem por ali quis permanecer, reteve-se no
presente, naquele instante, nos traços que o movimento desenhava como num
quadro imaginário e transparente. As longas linhas das mãos estendiam-se como
finos fios de uma beleza frágil e delicada, a pele escondendo rios de sangue
subterrâneos num esboço de correntes, impulsos, vontades, quiçá sonhos deambulando
pelo olhar que parecia procurar alguém, nesse encontro do que desejamos, mas ao
qual as mãos não podem alcançar. A sua atenção retinha-se agora apenas naquela
perfeita extensão final dos braços e supôs abraços estendidos, o movimento dos
dedos entrelaçando carícias e percorrendo territórios numa viagem de ternura.
As mãos insistiam em cativar-lhe o olhar, em arcos serenos e pausados de melhor
explicar as palavras, como o prolongamento de um sorriso que dançava como um
cisne nuns olhos carregados de sentimento. Estava preso no encanto das mãos e
quando estas de novo se ergueram, saindo do repouso que encontravam uma junto
da outra, sentiu esvoaçar os sons de Haendel soprados por violinos inventados
que aquelas mãos, onde residia uma beleza perturbadora, activavam numa cadência
que imobilizava. Foi como se aquelas mãos lhe tocassem, agarrassem as suas, as
aprisionassem entre os longos e serenos dedos e o conduzissem ao de leve pelos
caminhos das madrugadas onde a ardência de luzes coloridas fazia abrir um céu
enfeitiçado. Os sons desfaziam-se em cores, em tintas donde brotava a
luminosidade da Veneza de Canaletto ou seria antes a irreverência das pinturas
de Caravaggio, já não o sabia. Encerrado numa campânula, não escutava a melodia
das vozes, antes e apenas o que as mãos faziam sair das cordas dos violinos
suavemente tocados numa tangente pelo arco que seguravam num exercício de ir e
voltar, exaltando o Messias numa cadência de louvor, voando nessas cores
renascentistas e proféticas. Uma das mãos tocava-lhe o rosto, pousava-lhe a
palma sobre os lábios. Segurou pelo pulso, beijou-a com a pureza cristalina da
água de nascente, com delicadeza insistiu em retê-la na sua, arrastou-a ao de
leve pelo olhar, o seu, nessa carência de consolo que vive nos homens e
prolongou o gesto por minutos que se escoaram num tempo que não viu. Porque lhe
acenavam, porque se movimentavam vozes no exterior daquele vidro onde
permanecia? Pareciam chamá-lo, a música, extinguindo-se, levou a luz das cores
e Veneza terminou os seus dias. Acordavam-no do sonho, no torpor dos seus
olhos, as mãos, aquelas mãos já não acenavam, mas estas, as que continuava a
ver do outro lado da mesa, continuavam a esboçar desenhos que prolongavam as
palavras que voavam para outros olhares em direcção a outros mares. Haendel
partira, Caravaggio e Canaletto jà não estão connosco, ficaram apenas as mãos,
a delicadeza daqueles traços, a leveza da pele, a perfeição dos dedos
abrindo-se como flores primaveris. Que importa se é tudo imaginação?, se todas
as noites adormece com o afago daquelas mãos sobre o seu rosto.”
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