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01/02/12

OS QUE NÃO SABEM FALAR


António Mesquita



"Eu gostava bastante dos médicos, não me sentia minimizado pelas suas dúvidas. O problema é que a sua autoridade aumentava de hora em hora. Não nos damos conta, mas são uns reis. Abrindo a minha habitação, diziam: - Tudo o que está aqui nos pertence. Lançavam-se sobre os meus recortes de pensamento: - Isto é nosso. Interpelavam a minha história: - Fala, e ela punha-se ao seu serviço. Rapidamente me despojava de mim mesmo. Entregava-lhes o meu sangue, a minha intimidade, oferecia-lhes o universo, dava-lhes a luz. Aos seus olhos, em nada assombrados, convertia-me numa gota de água, numa mancha de tinta. Reduzia-me a eles próprios, passava inteiro debaixo do seu olhar, e quando, no fim, nada tinham presente senão a minha nulidade e já nenhuma coisa mais para ver, levantavam-se, muito irritados, gritando: - Muito bem, onde está você? Onde se esconde? Esconder-se é proibido, é uma falta, etc."
 
 
"A loucura da luz" (Maurice Blanchot)
 
 
 
O poder da linguagem, a mágica das palavras que se apropriam do pensamento (que lhe impõem um regime), que "deixam à porta" o "leigo" como um doutor em teologia, na Idade Média, em nenhum lugar encontra melhor exemplo do que na profissão de médico, mesmo no mais democrata. A este propósito, ocorre-me o que Proust dizia sobre o snobismo (o último reduto do "sangue azul") da aristocracia, com o exemplo do duque de Guermantes e do seu primo, o príncipe. Deles, o mais snob, o que mais desprezava "abaixo" dele, não era o aristocrata indefectível, mas o democrata.
 
Não é culpa dos médicos se nos "reduzimos" à coisa doente frente ao poder que representam. De bom grado nos submetemos, se obtivermos a cura. De facto, não é uma profissão como as outras, nem, na verdade, um poder político.
 
O paradoxo é que quase todos confiamos a esse poder e a esse suposto saber, o que nos é mais íntimo e o que devíamos conhecer melhor. De facto migramos, com tudo o que somos, para um lugar de pensamento único e de linguagem esotérica em que nos tornamos, de facto, infantis (de 'infans', o que não sabe falar).


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