01/12/11
CLANDESTINO
Alcino Silva
Talvez só num momento
tardio tenha compreendido a posição que ocupo na sociedade. Por vezes
habituamo-nos de tal forma ao que somos que já nem nos interrogamos sobre a
nossa própria situação. Num desses momentos de paragem, em que tudo se
imobiliza, percebi que na verdade fui sempre um clandestino, nunca saí desse
silêncio onde habitam as grandes solidões. Desde a infância, talvez mesmo desde
o momento que nasci. Trocaram-me o lugar onde pela vez primeira o sol me
chegou, nesses lampejos seus de fim de primavera lançando os braços para o
verão. A partir de então, tenho vivido nesse labirinto furtivo onde habita o
nada. Nessa idade em que desejamos ser grandes passava sempre ao lado de tudo,
era como se não me conhecessem e na escola já numa fase tardia todos se
admiraram com o miúdo que ocupava o último lugar da fila. Nunca tinham reparado
na sua presença. Na adolescência, uma noite atravessei as montanhas a caminho
de uma cidade interior e aqueles a quem pedi boleia esqueceram-se pelo caminho
de que com eles seguia e só horas passadas quando o álcool lhes toldava os
gestos, pararam. Aproveitei para me esgueirar. Há muito que havia ultrapassado
o destino, mas nem falei, não fosse lembrarem-se de mim. Meses volvidos,
atravessei a meseta num comboio nocturno que silvou até de madrugada na
potência das suas duas caldeiras. Escondido entre os caixotes que se amontoavam
no corredor da carruagem, deixei-me ir. Mais uma vez, ninguém me questionou.
Continuava incógnito e só, quando o avião se aproximava dos himalaias e senti
aquele olhar sobre mim. Era um olhar sereno, mas expressivo. Expressivo? Era
sublime e talvez tenha sido nesse instante que descobri não possuir identidade.
Nunca me tinham perguntado o nome. Pensei, vai ser agora. Tantas vezes a iludir
essa legalidade onde assenta tanta ordem, tanta disciplina, tanta gente de bem,
vão perguntar o que faço aqui. Olhei pela janela como quem procura o caminho
para casa, mas aquele rosto pousava sobre o lugar onde me encontrava.
Conformado olhei de frente e, nesse instante, uma voz quase me segredou,
«sente-se bem?». Ainda não estava em mim quando percorri a rota da seda nas
franjas daquele deserto tórrido que conduzia até às proximidades do
mediterrâneo. Muito mais tarde, já trabalhava, e quando pensava que estava tudo
em ordem, dou comigo a constatar que ninguém me conhecia. Chegava a horas,
produzia, era assíduo, disciplinado, rentável, mas não contava, ninguém sabia,
não aparecia registo da minha pessoa. Enfim, habituei-me e creio mesmo que me
conformei, deixei-me ir. Talvez seja o que chamam, destino. Pelo menos era o
que aceitei acreditar até ao momento em que passaste e percebi que estavas de
saída para uma viagem. Vi-te ao longe e ocorreu-me esse lampejo de acreditar
que o que estamos a pensar é verdade. Apetecia-me viajar também, mas não
desejava ir outra vez sujeito ao olhar de todas aquelas pessoas que não me
viam. Foi então que tive essa ideia de seguir clandestino no interior dos teus
olhos. Devo ter sido atraído por esse fascínio que de ti espreita como se de uma
janela saísse luz. Tantos anos a ocultar-me haveria de servir para alguma coisa
e assim com essa arte furtiva, escondi-me no lugar onde espreitam os teus
sonhos e fui seguindo e contigo percorri essas cidades onde a riqueza e a
cultura se instalaram ao longo de séculos numa opulência sedutora. Nunca tinha
viajado assim, num lugar tão bonito e daí olhando as belezas do mundo. No
interior dos teus olhos já não me importava que não me conhecessem, a riqueza
do que via fazia-me sentir viajante do espaço, aventureiro das sagas milenares
da história. Aqui e ali saía, deambulava pelas ruas da cidade, calcorreava
essas pedras, admirava essas paredes erguendo-se céus acima nessas cores
irreais da magia e numa tarde quando o sol parecia baixar de intensidade, parei
extasiado perante o colorido das flores nas margens de uma estrada. Nesse
espaço de tempo em que sentimos a doçura da vida a imobilizar-nos os gestos,
observei deliciado o amarelo a trocar abraços com o verde e a deixar-se beijar
por tons de vermelho. Compreendi que esse espaço florido era também um pouco
clandestino como eu, só aparecia perante mim e não compunha canteiros de
qualquer praça, mas antes e apenas o reflexo dos magníficos jardins que habitam
os teus olhos, os quais voltara a encontrar depois de muito vagabundear essa
tarde. Então pela primeira vez, desejei ficar clandestino para sempre, que a
tua viagem não terminasse e que o meu lugar no mundo fosse nesse refúgio do teu
ambarino olhar.
LARGUEM TUDO...
Cristóvão Sá Pimenta
http://www.panoramio.com |
“…Larguem
tudo novamente, lancem-se pelos caminhos”[1]
Quero ir lá para
trás. Para um tempo de aventura e ilusão. Para um tempo que o inebriar dos
espíritos e as mentes libertas compunham as sinfonias da tarde. Quero ir até
onde as forças me derem para gritar… Não, não quero estes bichos de merda. Que
à dignidade humana trazem desgraça e solidão. Chega de promessas vãs. Deixai
que me renove de forças e utopia e irei pelas pradarias, montado em cavalo de
esperança, anunciando novas vidas.
Ficaste de bolsos
vazios? Esvazia o dos outros. O daqueles que te forçaram a penúria. De que te
vale o voto que tens na mão…é arma de pólvora seca. Melhor será acreditares em
ti e em ti, qual pedra lançada à água, esperar que as ondas se multipliquem e
contagiem outros tis, em exercícios de solidariedade e amor.
Temos de “… subverter
o quotidiano”. À norma, responder com o novo. À norma, retorquir com o arrancar
das palas. À norma…subverter, subverter, …deixando que os esbirros se afundem
no lodo da ignomínia. Procuraremos novos cisnes e que outros cantos nos levem à
opulência superior do Ser, esvaziando o ter.
Assobiaremos a nossa
raiva, até que as cabeças dos pandilhas sejam armas de arremesso, pois de útil
mais nada têm. Num tempo de passagem que é permanente, exige de ti a vida,
ignorando os produtores de palavras e feitos ignóbeis. Esquece a intempérie do
planeta troika que nos impinge seres feios e maus.
Dá ao fruto o sabor
da esperança e amor profundo dos corpos adolescentes, deixando que em liberdade
o género se confunda, expirando e suspirando por novos caminhos. Que interessa
agora o sonho antigo? Em nome dele fizemos desgraça.
Não receies perder-te
nos labirintos…pois diferente te sentirás. Os que te deixaram, os do medo,
esses sim … destrói-os … são já caminho sem saída. São princípio de precipício
e fim de linha.
Deixa que outras
energias te avassalem o corpo e parte para a (re)construção da tua utopia, “…largando
tudo novamente, lançando-te pelos caminhos” do arco-íris.
[1] Exercício a
partir Bolaño (1976) – Primeiro Manifesto Infrarrealista
A MOEDA SOBERANA
António Mesquita
"O
Sr. Proudhon não esgotou ainda todas as razões pretensamente económicas. Eis uma
duma força soberana, irresistível: é da consagração soberana que nasce a moeda:
os soberanos apoderam-se do ouro e da prata e apõem-lhe o seu selo. Assim o
livre arbítrio dos soberanos é, para o Sr. Proudhon, a razão suprema em
economia política! Na verdade, é preciso ser completamente destituído de
todo o conhecimento histórico para
ignorar que foram os soberanos que, em todos os tempos, se sujeitaram às
condições económicas, mas que nunca eles fizeram a lei. A legislação tanto
política como civil não faz mais do que
pronunciar, verbalizar o poder das relações económicas."
"Miséria da Filosofia" (Karl Marx)
O tom de polemista
utilizado por Marx não é aqui, para nós, o mais interessante. Ele fala com a
autoridade de quem acaba de deslindar uma situação complexa (a do sistema
capitalista) e contempla os patéticos esforços dos que procuram explicações ou
justificações. Aliada à teoria da "alienação", a sua crítica
parece não deixar "pedra sobre pedra". Porque mesmo os bem
intencionados, ou até as vítimas desse sistema, foram por essa teoria
destituídos, à partida, de qualquer competência.
Por muita experiência
que se tenha, hoje, do funcionamento daquilo a que Marx chamou de sistema
capitalista ( e o facto desse conceito ter aplicação quase universal prova até
que ponto a teologia foi mais longe do que a crítica), e por muita reflexão que
tenha suscitado, ninguém hoje pode falar com a autoridade ( ou com a certeza
dogmática) com que Marx falou, no início duma época que iria marcar para
sempre.
A causa principal
dessa incapacidade é do domínio dos factos históricos, mais do que do domínio
da crítica filosófica. A força do "Socialismo do Leste" revelou-se um
"castelo de cartas", no momento em que o homem real pôde, enfim,
tomar o lugar do "homo sovieticus".
A crítica da
ingenuidade de Proudhon parece hoje mais do que fundamentada. Mas só se
tornou óbvia com o progresso da influência marxista.
Nos tempos que
correm, a política do BCE (que não é central nem europeu) parece tão enredada
nos seus preconceitos ideológicos como a teoria da "moeda soberana" o
estava no espírito de Proudhon.
Também aqui, para a
crítica se tornar óbvia, é preciso um "veículo" (para empregar um
conceito da nova finança) social que tarda a surgir.
MUROS RELIGIOSOS (6) O Islão
Mário Martins
Meca (Wikipédia) |
Nos textos anteriores
abordamos os aspectos doutrinários principais que, de diferentes e demarcados
modos, globalmente caracterizam e distinguem, em termos religiosos, a chamada
civilização judaico-cristã. Agora, com o presente texto, entramos,
respeitosamente descalços, noutro mundo civilizacional.
“Atesto que não há
outro deus senão Deus e atesto que Muhammad (Maomé) é enviado de Deus” *
A adesão ao Islão reduz-se
a esta profissão de fé (…) e o monoteísmo é, sem dúvida, a palavra fundamental
do discurso do Islão sobre si mesmo *
Não existe povo a que
Deus não tenha enviado um mensageiro, afirma o Alcorão (…) Entre esses
mensageiros, apenas alguns podiam e deviam ser nomeados no Alcorão: são em
número de vinte e cinco, nomeadamente os fundadores das (outras) duas religiões
monoteístas, Moisés e Jesus, assim como alguns outros profetas do Antigo e do
Novo Testamento. Diante deles, alguns outros nomes citados no Alcorão são nomes
de profetas enviados especificamente aos Árabes, e que não encontramos
mencionados na Bíblia: Sálih, Shu’ayb, Húd… (…) *
Homem entre os homens,
Maomé nasceu no ano 570 da era cristã e morreu a 8 de Junho de 632. É,
portanto, um personagem histórico. A pregação, que iniciou com a idade de
quarenta anos, de modo algum pretende reivindicar para si outro estatuto que
não seja o de “homem, enviado de Deus” (…) Mais, a aceitação da dimensão humana
é reivindicada como uma condição da profecia monoteísta: “Não se admite que o
homem a quem Deus deu o Livro, a sabedoria e o dom da profecia dissesse aos
outros homens: ‘Sede os meus adoradores e não de Deus’” (Alcorão) *
Se as religiões do
Livro (Judaísmo e Cristianismo), com as quais o muçulmano afirma ter tantas
afinidades, possuem livros sagrados, esses textos apresentam-se como textos de
inspiração divina. O Alcorão, em contrapartida, apresenta-se como um livro de
“revelação” (…) *
O Alcorão, tal como
todas as revelações, é uma chamada de atenção: as provas da existência de Deus
que fornece estão já inscritas na criação e na ordem que preside ao universo
criado. É significativo que o primeiro versículo revelado a Maomé seja o
famoso: “Lê, em nome de teu Senhor, que criou”. Mas não menos significativo é
ver que a chamada de atenção toma como tema o facto de que Deus é o Fátir, o
criador integral, ex nihilo (a partir do nada), e que é o organizador da sua
própria criação; assim, a obediência do universo (…) a certas leis, é
apresentada, ao arrepio da argumentação de um Epicuro ou de um Lucrécio, (…)
como uma prova da sua criação por Deus, pelo Deus único. *
(…) O Alcorão está
omnipresente na vida de cada muçulmano. Está presente na educação da criança, a
quem é ensinado desde a mais tenra idade. O Alcorão constitui a referência de
todas as conversas, não apenas teológicas mas literárias. A sua leitura
integral, khatm, é sempre, à letra, um “cumprimento”: celebra tantos os
momentos fastos como os acontecimentos infelizes (…) *
As obrigações
cultuais do muçulmano são muitas vezes designadas pela expressão “os cinco
pilares do Islão”: a profissão de fé, a oração, a esmola, o jejum do mês de
Ramadão e a peregrinação comunitária a Meca (sob condição de capacidade
material e física). *
(…) Nessa
cidade-encruzilhada (Meca), conheciam-se e reconheciam-se os adoradores de
divindades múltiplas e variadas. Havia até uma espécie de modus vivendi que
fazia com que se admitissem todos os seus ídolos num templo único, a Ka’aba (etimologicamente,
“o Cubo”), objecto de uma veneração comum e de um culto comum. O respeito por
esta “casa”, onde se encontrava a Pedra Negra, impunha-se a toda a gente e
manifestava-se nomeadamente pela celebração de uma peregrinação anual (…) Eram usos
imemoriais de tal modo institucionalizados, de tal modo ligados à organização e
à administração da cidade que, paradoxalmente, até os defensores da crença no
Livro, nomeadamente judeus e cristãos, pareciam ter-se acomodado a eles. E ao
ponto de a Ka’aba abrigar, na ocasião em que Meca se rendeu ao Profeta, uma
representação de Abraão e outra da Virgem com o Menino: vizinhas, pois, dos
trezentos e tantos ídolos que lá se acumulavam. A sua presença indicava uma
realista mas paradoxal “cohabitação”. *
A especificidade do
Islão relativamente às outras religiões é, pois, o lugar que nele ocupa a fé na
escala dos valores. O que pode explicar muitas grandezas. Tal como poderia, sem
os desculpar, explicar muitos desvios: quando o acesso - ou o regresso - à fé não
é acompanhado da consciência do caminho percorrido até lá e da compreensão por
aqueles que não o percorreram. E, do mesmo modo, já não há fé quando a
convicção de ser detentor da verdade legitima o desprezo por aqueles que não a
detêm, quando o esforço no caminho de Deus leva a encarar como inimigos os que
levantam, ou simplesmente são obstáculos. Tais erros são próprios de espíritos
e almas que desesperaram da força de Deus. *
* “As grandes religiões do mundo”,
Azzedine Guellouz, Direcção de Jean Delumeau, 1993, Editorial Presença, 2002.
PS: segundo a Wikipédia,
o Islão ensina seis crenças principais:
- a crença em Alá (Allah), único Deus existente;
- a crença nos anjos, seres criados por Alá;
- a crença nos livros sagrados, entre os quais se encontram a Torá, os Salmos e o Evangelho. O Alcorão é o principal e mais completo livro sagrado, constituindo a colectânea dos ensinamentos revelados por Alá ao profeta Maomé;
- a crença em vários profetas enviados à humanidade, dos quais Maomé é o último;
- a crença no dia do Julgamento Final, no qual as acções de cada pessoa serão avaliadas;
- a crença na predestinação: Alá tudo sabe e possui o poder de decidir sobre o que acontece a cada pessoa.
Pequeno
léxico:
Alcorão
= (literalmente) “a Leitura”
Islão
= (literalmente) “submissão a Deus”
Muçulmano
= crente no Islão
Pedra Negra = Segundo
a tradição, a pedra (possivelmente um meteorito), com cerca de 50 cm. de diâmetro, foi
recebida por Abraão das mãos do anjo Gabriel (Wikipédia).
RECORDANDO JORGE DE SENA
Manuel Joaquim
Recordando
um grande escritor.
Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya
Por Jorge de Sena
"Os Fuzilamentos de 3/5/1808" de Goya |
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse “com suma piedade e sem efusão de sangue.”
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais do que uma vida ou a alegria de tela.
É isto o que mais importa – essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga –
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam “amanhã”.
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é só nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
É possível, tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse “com suma piedade e sem efusão de sangue.”
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais do que uma vida ou a alegria de tela.
É isto o que mais importa – essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga –
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam “amanhã”.
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é só nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
Lisboa, 25 junho 1959.
(In poesia II, pg 125 a 128.)
Subscrever:
Mensagens (Atom)