Alcino Silva
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Logo à entrada sentiu o cheiro da miséria. Conhecia-o de longa data e não lhe era difícil identificá-lo. Não, não iludia a questão com sinónimos bondosos, mudando a palavra, por termos escondidos como, situações de carência, debilidades económicas, ou ainda, incapacidade económica de satisfazer necessidades. Não consolava o seu modesto conforto com palavras que o libertassem da sua responsabilidade. Aquele era mesmo o odor da miséria, desse estado que faz larvar a perda da dignidade, esse valor tão elevado do ser humano, da identidade, que verga a disciplina e faz desmoronar a vontade.
Talvez nesse dia sentisse a alma destroçada pela inexistência de olhares que lhe enchessem os sonhos de mar e o tornassem mais sensível ou mais receptivo, ou até sentisse essa necessidade de assumir essa culpa que quase sempre nos atribuímos quando não sabemos vencer a incapacidade de nos aproximarmos dos outros. É possível que nessa manhã em que, subitamente a temperatura se elevou para valores que davam tempero e alento ao corpo e não tivesse atempadamente ajustado a roupa à novidade ambiental e esse incómodo o fizesse viajar em ausências.
A meio da escada pareceu-lhe que a situação melhorava. Não eram visíveis sinais de degradação, havia limpeza mínima e até o cheiro diminuíra. Perguntou, questionou, indagou, sem pormenores, apenas com os elementos suficientes para dizer o que desejava encontrar. Ao fim de alguns minutos, escadas subidas e descidas, soube qual a porta certa para bater. Tocou e aguardou. Vozes e sons mexeram-se agitadas no interior e a barreira que vedava o acesso, abriu-se até meio. Surgiu-lhe uma adolescente, assim lhe pareceu, alta, em pijama, rodeada por um bando de crianças, expectantes, no meio das quais, aquela jovem parecia a mais velha. E era, mas já não adolescente, nem irmã. Ainda substituiu o bom dia pelo olá, como em tantas ocasiões fazemos com os mais jovens, mas quase de seguida, compreendeu que a mulher que estava na sua frente, era simplesmente, a mãe. As crianças rondavam em média os 7 anos, com apenas uma delas a chegar aos 10. Era a letrada da família. Sabia até dizer de memória, o nome da rua e o número da porta, enquanto a mãe se perdia no alvoroço do desconhecimento. Os relatos e as perguntas arrastavam-se para a paciência daqueles a quem o futuro se resume ao presente, e o choro e os apelos repetiam-se colados a movimentos em torno do corpo, para eles gigante, que funcionava como um pilar de segurança. Todos pretendiam que a atenção dos adultos recaísse sobre si próprios e não em exclusivo sobre o irmão que desempenhava na ocasião o papel principal. Não era a miséria, com cheiro ou sem ele, que lhes retirava essa vivacidade que nasce com todos nós e vive sempre no sorriso das crianças. Talvez o percam, mais tarde quando a violência dos que mandam lhes impuserem apenas caminhos sem saída.
Quando tocou o tempo de partir, sentiam já liberdade suficiente para sorrirem e mostrarem um pouco de si. Já na porta, voltou a olhar, procurou palavras que não encontrou, mas sorriu, acenou um adeus movimentando a mão. Desceu as escadas com vagar como se estivesse a chegar ao destino e lhe sobrasse o tempo. Na porta olhou para a manhã, de cinzentas nuvens mas de tépido ambiente, com o sol a ser barrado no seu caminho, surgindo tímido nas alturas do universo.
À chegada trazia essa solidão que por vezes nos invade a alma quando até ela não chegam os olhares que desejamos. Na saída, percebeu que a sua solidão era ainda mais ampla, pois transportava também a solidão dos outros, daqueles que ainda não sentiram, ou não perceberam, a necessidade da revolta. E soube, mais do que nunca, que há olhares que nos fazem muita falta.
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