StatCounter

View My Stats

01/01/10

O PLACAS MORREU

Mário Faria



Era um jovem que viveu sempre do lado contrário dos que recebem reconhecimento. Já em miúdo fugia da escola como o diabo da cruz. Os professores não gostavam dele, porque era rebelde. Lia e escrevia, era suficientemente sagaz para fazer perceber que estava longe de ser analfabeto.

Praticava desporto, era muito habilidoso em quase todos eles, jogava bilhar de forma exímia e era um semi-​profissional de poker. Era por essa via que ganhava o dinheiro para os seus gastos pessoais. O sustento estava garantido, pois vivia com os pais humildes que sempre o mimaram. Fugia do trabalho, como antes da escola. Andava de bem com a vida e sem preocupações de maior. Em segredo e com uma perna às costas fez a 4ª. classe que passou a ser a escolaridade mínima exigida no desporto federado, pois queria continuar a poder jogar.

O desporto proporcionou-​lhe o convívio com jovens estudantes, o poker aproximou-​o de quem tinha dinheiro para arriscar e perder. O seu ambiente social era bem mais elevado do que da família que descendia.

A sua parca instrução era muito bem camuflada pela leitura permanente : sabia discutir com ligeireza os temas culturais e políticos, lia diariamente o JN de fio a pavio e era um amante de cinema e do teatro. Com a morte do pai, a vida complicou-​se porque passou a ter uma família por sua conta.

Arranjou, através de um dos amigos, uma ocupação à sua medida. Não exigia horários apertados e trabalhava à comissão. Não estava preso e trabalhava segundo o seu ritmo. Passou a vender placas publicitárias que passou a servir-​lhe de alcunha. Como conhecia muita gente, ia-​se safando razoavelmente, sem nunca se esforçar de mais.

Com o 25 de Abril pouco mudou. Radicalizou o discurso, manteve a prática. A sua actividade profissional expandiu-​se e na economia paralela teve algum sucesso durante alguns anos. Virou empresário por conta própria, sem nunca pagar impostos. Deambulou de negócio em negócio, das máquinas de jogo ao Marlboro, enquanto as autoridades não o apertavam. As oportunidades foram minguando e foi sobrevivendo em crescente dificuldade, contando sempre com a ajuda de expedientes, no limite da legalidade.

Veio a reforma, exígua a exigir outros micro negócios inconfessáveis, mas nunca reprováveis. O seu discurso tornou-​se ainda mais radical, o que não o impediu de transitar da extrema esquerda para o PS. Vivia com dificuldades acrescidas, no limiar da pobreza. Sempre doente e a queixar-​se dos mesmos : dos que comiam tudo e não deixavam nada.

Há dias encontrei-​o. Descia a rua muito devagar, pálido e com a mão a segurar o peito. Levei-​o, a seu pedido, ao Centro de Saúde. Ficou lá. À noite telefonei-​lhe e disse-​me que a médica lhe deu uma injecção intravenosa e disse-​lhe que eram gases. Fiquei preocupado porque me pareceu doente de verdade. Telefonou-​me, no dia seguinte, e disse-​me que ia ao hospital que não suportava as dores. Esteve nos cuidados intensivos : um enfarte. Disse-​me que o queriam operar, mas não o permitiria, porque tinha sido operado à próstata, iam dois anos, e tinha sofrido uma paragem cardíaca. Ia voltar para casa, quando tivesse alta.

Não veio. Morreu quando tomava banho no hospital : caiu e não se levantou mais. Desta vez não foram gazes, foi o coração que estourou.

O Placas não era trabalhador, nem especialmente tolerante, simpático, benevolente, paciente ou humilde. Era muito orgulhoso, teimoso e defendia as suas ideias de forma radical. Tinha, porém, uma qualidade pouco comum : era um amigo do peito de todas as horas. Sempre foi. Tive pena de nem sempre ter demonstrado o quanto me honrava essa amizade.

O MEC escreveu de forma muito oportuna que " … a palavra pena é das mais abusadas da nossa língua …. a pena é o triunfo da cobardia, do egoísmo e do laxismo …. Fiquemos com a pena para o que serve – para a compaixão ; para a sentença ; para o que voa no céu e na escrita, e apuremos vocabularmente as nossas necessárias hipocrisias".

É isso, temos sempre muita pena quando já nada podemos fazer. E antes ? Para que serve a um amigo de sempre que se tenha pena dele, depois de ter morrido ? O vazio do teu funeral, Placas, é a prova do triunfo do comodismo. A pena vale sempre quando alma é pequena. Será?


Início

Sem comentários:

View My Stats