01/07/09
AINDA O BAIRRO DAS AMAZONAS
Como não me apetece escrever sobre nenhum tema da actualidade recorro às imagens da infância, aí pela segunda metade dos idos de cinquenta, naquele bairro com nome hípico, sei lá porquê, que eu gosto de cavalos gosto, mas naquele tempo a equitação era, de facto, reservada a uma elite, nós era mais o jogo da “casquinha porta a porta”, imagino que só os da minha geração e os mais velhos saberão o que isso era, uma simples casca de laranja a saltar numa mão e a outra mão a rematá-la à baliza que era uma porta de casa, se bem me lembro as duas portas tanto podiam estar de frente uma para a outra como no mesmo lado, bom, havia a variante mais sofisticada de se fazer uma bola amarfanhando papel de jornal numa meia velha de nylon de senhora, de vez em quando lá aparecia alguém com uma bola a sério que íamos jogar para a “pedreira”, a larga rua do bairro de terra e pedras onde se desenhavam os círculos para se jogar ao pião, faniqueira atrás e aí vai ele a rodopiar ora no chão ora a fazer cócegas na palma da mão, a que se seguiam as quecas da regra com que se nicavam os piões dos que perdiam, numa linguagem de aparência brejeira mas realmente inocente, ou então íamos dar uma volta de bicicleta a armar, um guiador feito de arame e as pernas a servir de rodas, já que o aluguer de uma ou meia hora, já não me lembro bem, de uma bicicleta a valer na Rua do Paraíso, que na altura era usualmente chamada pelo antigo nome dos Ferreiros, tal como a Praça da República era o Campo (da Regeneração) e a Rua dos Mártires da Liberdade era da Sovela e mesmo a Rua Antero de Quental era algumas vezes tratada por Rainha, dizia eu que o aluguer de uma bicicleta custava, salvo erro, 10 tostões que, somados, representavam 1 escudo ou duas broínhas de mel na Confeitaria Carioca, tudo à vista da mui altaneira e burguesa Igreja da Lapa, onde a missa dominical do meio dia era um acontecimento social muito concorrido, foi lá, nos seus frios e austeros corredores que fiz a catequese e aprendi os ritos da comunhão e onde, às vezes, era convidado a descalçar-me para a venerável catequista examinar se os pés cheiravam a “chulé” e se as unhas estavam convenientemente lavadas e aparadas, ou então guiávamos o arco com a gancheta, feitos de arame já se vê, o arame tinha muita saída nessa época, outras vezes jogávamos “à sameira” ou “à sameirinha”, não sabíamos sequer o que eram caricas, com casca para lhes dar peso ou sem casca, e era vê-las a correrem pelas guias dos passeios fora empurradas pelo polegar ou por um piparote do dedo médio, era preciso ter algum cuidado nos passeios a descer porque sempre podia vir, mais ou menos desgovernado, um tosco “carrinho de rolamentos”, feito de três ou quatro tábuas cruzadas e quatro rolamentos usados que um qualquer Fangio se esforçava, em cima dele, por guiar com uma simples corda, ou líamos os condores das coboiadas antes de passarmos, perigosamente, à acção, brincando aos índios e aos cobois com arcos e flechas feitos de varas de guarda-chuvas e do rijo fio do Norte (não nos ocorria perguntarmos se havia fio do Sul…), nesta festiva quadra dos santos populares irrompia pela rua o cheiro da degola dos inocentes, refiro-me aos anhos que eram sacrificados às dúzias na quinta ao lado para no dia de S.
ANJOS E PREDADORES (I)
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Em:
A 6 de Abril de 2002, Durão Barroso tornou-se primeiro ministro de Portugal. Destacou-se pela política de contenção da despesa pública (onde sobressaiu a actividade da sua ministra das finanças, Manuela Ferreira Leite) e pelo apoio à invasão do Iraque em 2003, uma decisão que, de acordo com as sondagens, era contrária à opinião de parte dos portugueses. O seu discurso da tanga foi muito aplaudido e contou com muitos seguidores.
- Causa 2 – Uma melhor educação para os nossos filhos.
É ao nível dos ensinos pré-escolar, primário e secundário que deve ser dada particular ênfase, dadas as situações de dependência e de falta de produtividade. - Causa 3
– Melhores serviços públicos.
Compete ao Estado garantir que todos os cidadãos tenham acesso a um preço justo e à liberdade de escolha dos prestadores de serviços públicos. - Causa 4
– Reduzir os impostos.
Uma carga fiscal pesada contribui para a diminuição do investimento e da iniciativa individual. - Causa 5 – Uma maior criação de riqueza. Mais e melhor emprego.
Um dos pontos de partida é a criação de um Estado menos burocrático, uma legislação laboral mais flexível e a possibilidade de concorrência em todos os mercados. - Causa 6 – Uma melhor justiça.
Para uma justiça eficaz é indispensável uma legislação simples e ajustada aos desafios da sociedade actual. - Causa 7 – Um melhor ambiente e qualidade de vida.
A qualidade de vida depende da criação e distribuição de riqueza, em particular da criação de emprego.
- Causa 2 – Uma melhor educação para os nossos filhos.
O DEDO
Agarrava-se compulsivamente e babando-se deleitado não largava, mesmo que pela mão o puxassem, o tentassem distrair com a roca, a guloseima, nada lhe tirava o prazer de sofregamente chuchar o indicador, já mirrado, encolhido e deformado pelo esconderijo quente e molhado do orifício bocal.
De quando em vez, uma palmada, não se aponta que é feio, mas olha lá, lá as nuvens, lá os bichos, lá os papões que esperam o tombar da noite para se deitarem comigo, por baixo da cama à espera que saias para me deitarem as mãos, ali mesmo ao alto perto do arco-íris, o que é o arco-íris, e nada lhe tirava a teima do indicador espetado sempre pronto a furar com perguntas.
Foi na ponta do dedo que descobriu a pele, rugosa nalguns sítios, cheia de histórias e de temperaturas e de reacções e desde então nunca mais perdeu o hábito de tocar fascinado o mapa que as linhas muito juntas da derme lhe contavam e lhe pediam. Apaixonou-se.
O dedo calejado dedilhava de olhos fechados as cordas do seu temperamento, chorava o violino sobre pautas invencíveis em tempo e compassos de cabeça levemente caída amparando as emoções nos dígitos arqueados.
Torto e enfermo ganhou um pequeno monte de carne empurrada pelo vício da caneta aprumada ao papel aberto a lembranças de quando era menino, chuchava muito recorda-se e ainda se lembra do sabor do dedo na boca tão igual ao prazer da tinta azul-china a manchar-lhe o indicador.
Fecharam-lhe os olhos, não sabe quem, mas viu distintamente um dedo na sua direcção, apontando-o como lhe haviam proibido.
PASSAGEIROS DA ETERNIDADE
Alcino Silva
Há momentos em que tudo se torna visível. Podemos esconder, disfarçar, desviar atenções, mas um instante apenas basta para que tudo se torne perceptível. Creio que já há muito se deram conta, tanto mais que aqui e ali fui deixando pelo caminho uma palavra, uma frase, uma ideia que conduziam a essa verdade onde aparecia estampada a realidade, sem cenários, sem pinturas. Criei essa ideia já lá vão uns anos de que vos guiava montanhas fora ao encontro do infinito. Acreditaram ou deixaram que as aparências assim o fizessem entender nessa atitude simpática que os seres humanos possuem de não quebrarem a nau com uma onda só. É certo que aqui e ali, uma vez ou outra vos levei ate lugares que nos fizeram ondular os sonhos e os olhares navegaram ao encontro de mundos quase inacreditáveis, mas esses momentos de grandeza foram servindo para adiar o que teria de acontecer. Percorremos rios, desbravamos montanhas, abraçamos o céu e a terra, descobrimos o universo onde se escondem as estrelas que à noite brincam como as luzes de lanternas que vigiam o mar. Chegamos até a receber toda a água que o céu escondia e nos invadiu a estrada numa manhã em que a neblina sôfrega nos barrava o caminho. E hoje, voltei a recriar essa ilusão de que vos havia de levar até àquele ponto, nas alturas onde só voam as águias e entusiasmados lá me seguiram. Penso até que também acreditei ou assim me quis fazer crer perante a derrocada que seria com o aparecimento da verdade. Mostrei-vos mapas, desenhei caminhos, fantasiei veredas e seguimos. As aldeias resguardadas nas encostas das montanhas, a verdura que a primavera deixara, a luxuriante beleza da paisagem iam guardando a insegurança do que resultou do erro cometido na primeira hora. Disfarcei. Bússola numa mão, a outra a apontar para Este. Os garranos a atrair-nos a atenção e aves de asas largas como o vento, embelezavam-nos o olhar e sustentavam a ideia que chegaríamos a esse destino anunciado. Pelo fim da manhã com o pico à vista, todos perceberam que de novo regressaríamos sem que o objectivo fizesse parte da nossa viagem e nesse momento compreende-se que a outra jornada, aquela que fazemos pela vida, já vai longa, pois começamos a encontrar as coisas e os lugares que já só alcançamos em imaginação e quanto mais fértil esta for para mais longe voamos. Já não foi possível esconder por mais tempo até onde nos conduz o fracasso de aparentar que podemos chegar onde as forças e os conhecimentos já não nos deixam ir. Sim, sempre vos trouxe de regresso e esta não seria uma excepção. Não que o necessitassem mas sempre dá algum conforto pensar que a nossa utilidade pode ter alguma serventia. Apesar de tudo, ao longo daqueles quilómetros não deixei de sonhar de beber com aquela sofreguidão de quem sacia uma longa sede, toda a beleza que se desenrolava em nosso redor. Os adjectivos, perante os instantes únicos que nos oferece a natureza, tal como no amor, tornam-se inúteis para descrever o que o olhar observa. Usá-los só poderá servir para diminuir o que observamos, aqueles momentos, lugares e paisagens que deixamos adormecer na alma. No silêncio dos desfiladeiros, no olhar que se prendia nas massas graníticas que o devónico deu vida, no verde intenso e brilhante dos arbustos que nos escondia o caminho, nos animais que vagabundeavam livres pelo dorso da montanha, voltei a sentir que continuamos nessas viagens em que nos tornamos passageiros da eternidade. Soltei o olhar quando as asas das aves gigantes planaram sobre a ravina num voo de eterno instante. Como a vontade de viajar por estes lugares de poesia supera a realidade, certamente que vou continuar a seduzir-vos com a ideia que vos poderei conduzir para além das nuvens e com a gentileza de sempre, dirão que acreditam e, lá voltaremos a essas horas únicas. Quando nos detivemos num recanto escondido deixando que o corpo saboreasse a água do ribeiro que cantava entre as fragas na procura desse mar largo onde vive a fantasia dos sonhos, sentimos que a eternidade pode existir num momento assim e que todas as agruras da vida perdem sentido num lugar sem nome, no interior da natureza e rodeados dessa beleza que sentimos como um poema.
A UTILIDADE DO INFERNO
Um fresco da Basílca de S. Petrónio, em Bolonha, "O Inferno", de Giovanni da Modena (1410 c.), mostra-nos o suplício dos corpos dos condenados ao fogo eterno. Em cada cova em que o fundo cavernoso se divide, um ou vários monstros cornudos atacam um vício particular. E ao centro, um grande animal cinzento leva à boca um homem do qual já não se vê a cabeça, enquanto por uma outra boca situada no sexo sai outro homem com a cabeça e os braços de fora. Não há dúvida de que se trata dum parto, mas do que entra pela boca do pecado.
O que se celebra aqui, contra todas as aparências, é o triunfo da vida que não acredita nestes horrores. Porque todos os pecadores deviam pagar o preço de ignorarem a morte enquanto viveram, de não ouvirem os avisos e as ameaças inúteis. Agora, não adianta arrependerem-se, terão uma eternidade para expiar terem sido tais como Deus os fez.
A condenação de Platão era a de voltarem a escolher o saco com a mesma sorte, depois de beberem a água do esquecimento. Nada de particularmente sádico nesta reincidência da natureza humana. Mas no espectáculo dos corpos do fresco de S. Petrónio e desses demónios côr de roedor ou de lagarto está um dos rostos, não da eternidade, mas da necessidade política. Não é a alma que se quer salvar com essa previsão dos fogos do Inferno, mas a ordem.
E é por hoje não sermos tão crédulos que o Inferno deixou de ser edificante e pôde ser oficialmente encerrado.