01/12/08
BARACK
E agora? Depois de anos de recessão política e desordem financeira, sucedem a recessão económica e, com ela, o agravamento das condições de vida, no quadro de uma crise de energia e ambiental. Como disse o Presidente Lula, está na hora da política e percebe-se, com efeito, que uma nova ordem política mundial está a nascer. O facto de os vinte países (incluindo a União Europeia) considerados mais poderosos se terem concertado para decidirem até Março regras de regulação do(s) mercado(s), se se inscreve, sem dúvida, nesse reordenamento geopolítico, representa, muito para além disso, a busca de um capitalismo de novo tipo, e uma mundialização político-económico-financeira cada vez mais institucionalizada.
Isto significa que ao capitalismo (“de casino”) só pode suceder o capitalismo (com maior regulação e controlo)? Perante o fracasso das experiências socialistas, baseadas, como se sabe, na ditadura política e na estatização da economia, e, sobretudo, face ao desnorte da análise que lhe sucedeu (ora considerando-se que foi o próprio modelo soviético que falhou, ora considerando-se, como agora, que o falhanço se deveu ao cerco do imperialismo americano), a resposta não pode deixar de ser afirmativa.
Os portugueses (pelo menos os da minha geração) sabem, por experiência própria, distinguir entre ditadura e democracia. Esta deveria ser uma razão acrescida para não se continuar a invocar o ideário do socialismo sem se especificar o que estava errado nas experiências fracassadas e arquitectar um novo modelo credível. Sem isso, não faz sentido e é mesmo paradoxal continuar a propor-se um sistema cujas experiências concretas ruíram.
Com Barack inicia-se um novo ciclo político. “Sim, nós podemos”? Como é típico dos grandes momentos políticos como este, esperamos deste homem que materialize os mais profundos anseios de paz, justiça e prosperidade no mundo, apesar de a experiência histórica ensinar que, cedo ou tarde, nos desiludiremos com ele. O fenómeno da entropia, que desorganiza os sistemas físicos, também está presente na política. Mas, tal como com Mandela, este momento altamente simbólico de afirmação da igualdade de direitos, esse ninguém nos tira.
O DIA EM QUE O (MEU) MUNDO MUDOU
Foi há dias atrás que fui sensível a um discurso apresentado face a esta crise do capitalismo – sim já não é desactualizado voltar a usar o termo -, a esta bancarrota total deste comboio que rodava alegremente para se espatifar contra um muro de betão. Pois diziam-me então que temos de ser consumidores e consumir, pois se não consumirmos as empresas não vendem e se não vendem encerram e encerrando, os trabalhadores, desculpem, os consumidores, ficam sem emprego. Pareceu-me uma teoria simples, acessível e perceptível, tão perceptível que costumando demorar algum tempo a compreender as realidades, desde logo aderi. Eu que durante tantos anos fui defensor de uma sociedade sem sumo, senti assim esse apelo a trazer-me até esta fantástica sociedade com sumo. Pensando bem, não fazia muito sentido, pois como saborear a vida, a beleza das coisas, os sentimentos das pessoas, numa sociedade em que se espreme e nada sai, absolutamente sem sumo, daí esta mudança que embora exija uma transformação do pensamento sempre poderá trazer alguma compensação material, dado que a sociedade com sumo, embora não dando nada, oferece tudo, inclusive essa espantosa liberdade que posso ter, tanto para obter tudo, como para não obter nada, pois uma das suas grandes maravilhas é permitir-me escolher e, portanto, poderei ser livre de nunca ter nada, mas caramba, liberdade é liberdade, enquanto na sociedade sem sumo, não dispunha desse instante mágico de ser livre sem nada ou ser, com muito, sobretudo com muito em cima da liberdade dos outros. Portanto, aí está a minha escolha pela sociedade com sumo, quanto mais não seja, por esses dois aspectos irrebatíveis, a minha liberdade e o contribuir para o trabalho dos outros, pois transformo-me num com sumidor. E, quem sabe, no futuro, talvez com um pouco de sorte, algumas cedências morais, na verdade, um homem que passa a ser um com sumidor não pode ficar inflexível, assim sem mover as ideias, sem lhes dar alguma elasticidade, não é uma questão de valores ou de dignidade como dizem os defensores da sociedade sem sumo, mas antes uma adaptação aos tempos, às circunstâncias, ao novo, ao moderno, e com essa flexibilidade, não poderei até obter um certo estatuto, encerrar-me até, quem sabe, no meu condomínio fechado, sair da garagem com um automóvel que se veja, fazer umas viagens espalhando os olhos por esse mundo admirável que se fecha para os que defendem a sociedade sem sumo. Sim, é verdade que nos exemplos que tivemos dessa sociedade sem sumo, se garantia direitos interessantes, como o do trabalho, o da saúde, o da cultura, o da educação, coisas assim, mas faltava o sumo, a minha liberdade individual. Para que serve ter saúde, educação, cultura, trabalho, se eu não sou livre, não posso escolher ir aqui e ali, mesmo que não vá a lado nenhum? Não serve para quase nada, daí esta minha adesão. É mil vezes preferível ter de mendigar trabalho, saúde educação, cultura e outras questões sem muita importância, mas ser livre. Caramba, ser livre, entendamo-nos. Até para ter fome é necessário ser livre, poder esticar os braços e gritar, gritar alto, não muito, que sou livre. E tendo decidido desta forma, achei por bem dar-vos conhecimento deste momento solene e tão significativo para mim. Hoje, dia 26 de Novembro deste ano que corre com o número 2008, decidi aderir à sociedade com sumo, ia a escrever aos valores da, mas lembrei-me que não tem valores, só tem sumo. Apesar desta minha decisão só não percebo porque razão lá no fundo do meu pensamento continuo a escutar a voz do cientista toscano a dizer, “no entanto ela move-se”.
O REGRESSO
Nessa noite não pregou olho. Voltava-lhe tudo à memória em vagas ora quentes ora frias, consoante a ansiedade ou a felicidade lhe tomavam espaço.
Lembrava-se de tudo com nitidez, dos cheiros, dos sons, da boca seca, da pele arrepiada.
Voltar. Voltar à azáfama do antigamente, da correria velada, do tremor nas pernas, da paixão que lhe tirava o tino dos pés do chão, voltar a morrer por cada vez que subisse ao palco, voltar a sentir medo de se esquecer das linhas, voltar ao improviso da vida em meia dúzia de minutos quando a cabeça falhava e o coração desatado compunha palavras na sua boca que os outros engoliam como certas, as mais certas aliás.
Quando subiu ao palco a primeira coisa que fez depois de o pisar com o pé direito foi apalpar as cortinas, sentir-lhes a macieza e o peso dos anos, a absorção de muitas noites agora misturadas com um travo de naftalina. Afastou uma fresta e bateu-lhe na cara a plateia vazia. Fechou os olhos, encheu-a de gente anónima que de pé estalaram recordações e disse para si obrigado, obrigado e o som do bis encheu-lhe a barba rala e branca de um sorriso.
Quem o visse decerto acharia que chorava, ou que se entristecera, ou que tonto da idade espreitava o que não havia. Mas não, era só o brilho das luzes a reflectirem anos e mais anos a gastarem o cénico, as pancadinhas, as palavras supersticiosas, o gole de aguardente para enganar o frio do estômago, a troca de roupa no intervalo fumarento entre a pergunta da praxe sobre a bilheteira.
Chamaram-no: Se sabia o que fazer, onde se deveria resguardar enquanto os actores trabalhavam, a velocidade ao puxar o cordame para a abertura das cortinas, a atenção ao texto para o final dos actos.
A TORTURA
A TURMA
"A Turma" (2008-Laurent Cantet)
Só em parte o filme de Laurent Cantet "A Turma" ("Entre les murs") pode reflectir os problemas duma escola do secundário no nosso país. O colégio Françoise Dolto está situado num dos bairros mais problemáticos de Paris; os filhos do emigrante do Maghreb ou do Mali têm uma questão prévia com o seu meio de acolhimento: eles sentem que a atitude de "respeito e obediência" que, em relação aos professores, é exigida aos alunos em geral, se confunde com a submissão duma cultura que é, as mais das vezes, apenas simbólica. Antes de aprender a língua "estrangeira", têm de conquistar, contra os reflexos condicionados do colonizador, uma identidade, tanto mais problemática quanto se vêem reduzidos a forjá-la com o bric-à-brac da cultura de massas. Quando esses alunos são convidados a fazer o seu auto-retrato, não é a África mítica que os inspira, senão o rap e os símbolos da sociedade do consumo.
Ficamos, porém, com a dúvida se, no caso das "ovelhas negras" virem a ser todas excluídas, teríamos uma escola onde, na aula do professor François Martin (o actor, François Bégaudeau é o autor do livro que serviu de argumento) se podia aprender o francês.
Porque não é apenas a atitude dos alunos em geral que é o contrário da atenção e do interesse em qualquer outra coisa para além do toque da sineta que os libertará do constrangimento, é que a escola parece ter-se adaptado a esse tipo de escuta relutante, e aquele professor é, na verdade, um entertainer que fala de tudo e de nada a fim de espevitar uma atenção moribunda e onde está completamente ausente a ideia do trabalho de aprender.
Parece que o estudo da gramática e da sintaxe não é já importante para o conhecimento da língua e que ela se pode aprender através dum convívio forçado com o professor. Mas é claro que, naquela aula, o problema prioritário, que submerge todos os outros, é o da disciplina e que se chegar ao fim sem um acto de insubordinação o adulto já ganhou o dia.
Como apontamento final, aquele jogo de futebol entre alunos atléticos e professores desajeitados, com a gravata do reitor a esvoaçar no meio, é uma metáfora da demagogia reinante que à força quer confundir a escola com a sociedade política, onde não existe hierarquia e todos têm os mesmos direitos.
Aconteceu que na tarde em que vi o filme a sala estava esgotada com uma escola, talvez, da vizinhança, e apesar do bulício natural nada houve que assinalar, a não ser que, de vez em quando, se via a silhueta duma professora que se erguia para chamar um ou outro à ordem.