É preciso ter lata para profanar este espaço com o relato de um tema, peripécias e personalidade que não cabem no perfil deste blog, nem colhem qualquer simpatia junto de quem gosta de poesia, de cinema, de teatro, de filosofia, de TV, de revistas cor de rosa, do jornal da caserna ou do boletim que o Bispo coordena. É normal. Esta crónica é mesmo foleira !
Como estamos naquilo que vulgarmente se designa por silly season, aí vai o relato de um acontecimento que reputo de interessante, apesar de tudo, porque tem a ver com a gente simples do aldeia em que vivo dentro desta cidade.
Cá no sítio, e com a supervisão da Junta, organizo – uma vez por semana – a “quadratura do círculo cá do meu bairro”, esta semana dedicada ao tema : “O Apito Final”. Sou o moderador, porque sou o mais velho. Pedi dispensa, com carácter excepcional, mas não me foi concedida.
Passo a apresentar os restantes participantes : o Zé da Frutaria (dono do pomar) e a companheira (Rute Marlene, dona da peixaria), ambos portistas, o Santos (o príncipe das retrosarias), benfiquista disfarçado de boavisteiro, o Luís (empresário de restauração), benfiquista, o Pinto (porteiro de bar), sportinguista, o Ilídio (técnico de arrumação de carros), doido por automóveis e anti-futebol, a Svetlana (estudante universitária russa), simpatizante do FCP e o bispo Floribelo, como gosta de ser chamado, prestador de mezinhas e de milagres, pastor duma dessas religiões com sede no Rio de Janeiro e consultor espiritual de uma equipa de futebol da 1ª. Liga.
Eram nove horas da noite quando abri a sessão. Notava que os rostos estavam tensos. Pedi elevação e que não houvesse interrupções, nem bocas foleiras, de uns para os outros. Havia muita cerveja fresca, pouca água, fiambre, queijo, chouriço, pão de forma, café e miniaturas, para aconchegar a discussão.
Limitei o tempo de intervenção a 3 minutos e ninguém tinha direito a bis, enquanto houvesse novos oradores a pedir o uso da palavra. “Está aberta a sessão”, exclamei solenemente. O primeiro a inscrever-se foi o Zé da Frutaria, seguiu-se o Luís, o Pinto e o Santos. Depois, foi mais ou menos a balbúrdia que deixei correr. Valeu o Bispo. Foi assim que se passou e consta da acta:
Zé da Frutaria : Mais uma cabazada do FCP. Desta vez até o Caldeira, que é um “torto”, lhes deu um baile. Dizem para aí uns ressabiados que o gajo é um pau mandado da Olivedesportos e apenas tinha serventia para representar o clube nos torneios de golfe. Pois, agora, o homem - com quem não simpatizava nem um bocadinho -, deu a tacada mais certeira da sua vida e virou do avesso a opinião da nação portista. Quanto ao Costinha da Liga e aos 5 matulões da Federação, só resta um caminho : pedirem ao Vieira emprego, pois são bons para encher pneus. Digo mais, são uns grandes ….
Santos (interrompe) : O que o Zé disse é insultuoso e uma cabala. O Platini é que vos topou. Esse é que vos conhece de ginjeira. O presidente do SLB – tomem nota e repito pela enésima vez : EU NÂO SOU BENFIQUISTA – tem toda a razão. O homem bate-se pela verdade desportiva e tem tido um comportamento exemplar, como comprova a sua vontade (confessada) de não querer que o SLB tirasse partido da eventual exclusão do FCP na CL. Isto é que é um exemplo. A UEFA vendeu-se. É pena que o PGR e a PJ não tenham poder sobre essa máfia. Incrível a decisão do TAS, tendo em conta…..
Rute Marlene (não lhe permitindo continuar) - Oh Santos cale-se que só está a dizer asneiras. Você é do Boavista e só fala das galinhas. Não está preocupado com a descida de divisão ou continua fascinado com o voo da gaivota? Continuou, cantarolando : uma gaivota voava, voava, cheia de pó nunca mais parava. Chamem a polícia, chamem a polícia ….
Svetlana (interrompe : põe-se de pé e fez-se silêncio. O que a mini saia e o pequeno top não cobriam deixou todos sem fala) – Qual polícia ? O SLB é o dono do regime. Conheço jogadores, treinadores, árbitros, dirigentes, autarcas, assessores, empresários, advogados, juízes e todos são unânimes : o SLB é intocável. Um Estado dentro do Estado, como repetidamente o maestro – que também conheço muito bem – não se cansa de repetir. Só por isso não os gramo : parecem os donos do país. Nem o Putin tinha tanto poder na Rússia. Uma vergonha. Tenho dito. Sentou-se. Generosamente, continuou a proporcionar-nos uma vista magnífica.
Ilídio - Por tudo isto e aqueloutro é que detesto a bola. O Futebol é o ópio do povo. E serve para calar…..
Zé (interrompendo) – O ópio de quem ? Não estás enganado e a confundir toucinho com velocidade ?
Ilídio - Oh Zé não me interrompas. O Pacheco Pereira e o Rui Rio é que têm razão. O país vive para o futebol, como se a bola comandasse a vida. Gosto de carros e sou um apaixonado pelo desporto automóvel, mas não sou fanático. O fanatismo é o pai de todos os males. Proibi em casa o futebol e resolvi o problema.
Zé – Pois resolveste. Os teus filhos saíram de casa. A tua mulher deixou-te. Gostas de automóveis, mas já não aceleras. Oh Ilídioooooo, tu para mim vens de carrinho.
Ilídio – Se voltas a falar da minha vida particular, não respondo por mim.
Floribelo, interrompendo – Proponho um intervalo, para acalmar e dar de beber à dor.
Achei bem e fiz uma interrupção de quinze minutos. Quando senti os ânimos mais calmos, recomecei. A cerveja esgotou-se como por encanto. Reabri os trabalhos e, depois de Floribelo ter assegurado que não interviria porque estava sujeito a um pacto de silêncio sobre o tema, dei a palavra ao Pinto.
Pinto - Não me dou com estas confusões. Felizmente o meu clube é verdadeiramente aristocrático, na melhor acepção da palavra. Temos o Hermínio e o Vítor que são umas feras, assim a modos que leões amansados habituados ao circo, em postos de comando. Desta forma, acautelámos a nossa representação na Liga. Somos chorões, campeões de grandes penalidades e com muitos figurões. Berrámos muito – quem não berra não mama – e calámos sempre que é conveniente. Sempre no timing exacto. Ouviram falar mais daquele imbróglio aquando da contratação de João Pinto ? Não, obviamente. Somos um clube de misteres e de presidentes da república. Este ano vamos ser campeões e vamos bater o nosso recorde de grandes penalidades. Está tudo previsto. Somos os príncipes do planeamento.
Luís – Tenho aqui um documento a que tive acesso privilegiado, com a cópia das escutas e não restam dúvidas que o árbitro viciou o resultado do jogo que o FCP empatou 0-0. Um roubo. As gravações, digo, as escutas provam-no de forma categórica. O testemunho da D. Carolina não deixa dúvidas. As penas aplicadas foram excessivamente leves, apesar do Dr. Ricardo se ter esforçado que nem um leão, digo que nem uma águia, para que o FCP descesse de divisão, como era justo, insisto. Há corrupção no futebol português. Está tudo viciado. Parece a Sicília. O Dr. Diogo (que é fixe) provou com o seu parecer que o polvo ainda mexe. Não me calo. Perco clientes e tenho sido ameaçado. Não me calo, repito. Preciso de protecção policial. Ouviram !
Nessa altura a Rute Marlene levantou-se, furiosa, e disse : Oh Luís tens cá uma lata ! Falas em vício seu caloteiro : não me pagas há mais de três meses e ao Zé a dívida é tal que até já perdi a conta. O Vieira deu cabo do Alverca, o Veiga era “dono” do Estoril e trabalhava para o SLB, os que falham grandes penalidades têm garantido o direito de jogarem no SLB e a rapaziada especializou-se em lançamentos de very lights e em fogo posto de autocarros. Incendiários é o que vocês são, seus invejosos. Tu é que precisavas de levar com um polvo nesses cornos.
O Luís, exaltadíssimo, respondeu : se não fosses mulher dava-te uma tareia, já que o teu homem apesar de vender fruta, já não tem tomates para te pôr na ordem!
O Zé furioso atirou-se ao Luís, mas foi aplacado pelo Ilídio e pelo Santos. O Pinto, como bom aristocrata, nem se mexeu. Era uma grande confusão de braços, quando se ouviu um grito estridente : “BASTA”. Era a voz do Bispo, num registo menos doce que o habitual. Resultou. Fez-se silêncio. Convidei a Rute e o Luís a sair, para podermos terminar em paz.
Foi aceite. O Zé contrariado ficou. Um amigo da Junta acompanhou os dois “expulsos” para que não ocorresse algo mais desagradável. E não aconteceu. Foram na paz do senhor.
Ia rematar os trabalhos quando Svetlana se levantou, excitadíssima, com a saia pela cinta e o top abaixo do soutien, disse com a serenidade possível : O FCP é o maior e o melhor. Também, eu, sou vítima de todas as invejas. Vocês sabem do que estou a falar. O FCP tem os melhores jogadores e ganha com uma vantagem tal que não consente dúvidas. Trabalhar mais e ser melhor, é o segredo. Sei o que passa com o Luís Filipe, coitado um frustrado. Sofre do síndrome : PdC. Não vou revelar as causas nem as fontes. Não sou delatora, nem bufa. O Luís Filipe abusa porque tem a certeza que, enquanto for presidente do SLB, sai incólume de qualquer rixa. Para terminar, convido todos a cantar comigo, os Filhos do Dragão numa versão e encenação muito originais.
Ficamos. Todos cantaram, sem excepção. De pé, como exigiu. A voz dela não era particularmente bonita, mas a encenação um achado. Pedimos bis, mas não foi concedido. O bispo insistiu, mas a Svetlana disse que não estava autorizada a bisar, em nenhuma circunstância.
Dei os trabalhos por encerrados. Para a semana há mais. Vamos tratar do conflito no Cáucaso.
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1 comentário:
Obrigado Caríssimo Alcino,pelo seu texto e pela bela foto que o encima e nos transporta até às alturas do Alvão, de Mixões da Serra, da Aldeia de Júnias e a tantos outros locais da verdade ancestral do nosso belo Portugal.
Deixo-lhe este soneto de ingénuo sentir que produzi em 1987. "A Paz", - na derradeira linha da última estrofe - anda de facto perdida, não somente em resultado das guerras, da fome, das catástrofes epidémicas, mas tambem em consequência dos atentados constantes à Mãe-Natureza.
CANÇÃO DA PRIMAVERA
Olha a paisagem verde a renascer
sob o suave azul do céu a abrir,
e o Sol a querer espreitar,anda ver
as árvores de novo a florir!
No ar, a passarada em sinfonia.
Na terra,um rio cheio de esperança.
É a Natureza em busca da harmonia
que o homem estraga por não ser criança.
Pois ser criança é querer amar,
é ser a Primavera, Amor, a Vida...
tudo que o homem já não tem p'ra dar.
Ó Natureza, ó Terra Prometida,
que a Primevera venha p'ra ficar
e traga ao mundo a Paz que anda perdida!
1987, Poema musicado, in Sérgio O. Sá, Dispersos no Tempo
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