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04/09/08

OS FIGOS

Cristina Guerreiro




Escuro. Ao abrir a porta a madeira rangeu pelo sobrado, ele deu-lhe um safanão e ela gemeu ainda mais à luz amarelada de final de dia. Fechou a porta, uma poça de água rodeou-lhe os pés descobertos nas alpergatas e ele bateu com força obrigando a madeira a dar mais um urro. Despiu a camisa molhada da chuvada setembrina. Agradava-lhe aquela água. Era macia, pendurava-se em gotas minúsculas como diamantes roubados pela barba grisalha e descuidada. Ficou de calças, camisola interior, pés nus sobre a madeira quente.

Escuro. Pela janela esquadrinhada pouco lume já saía do dia mas bastava-lhe.

Sentou-se, apoiou os cotovelos sobre a mesa e desembrulhou a dezena de figos, alguns pinguços, ambarinos, babosos de um mel que lhe picava as ventas e lhe aguava os olhos.

Meteu-lhes a unha, primeiro devagar, depois o polegar enterrou-se na polpa granhuda e escachou o fruto pela metade. Encostou-o à boca, à barba e rapou-lhe o miolo, olhos ao tecto, vigas de madeira silenciosas perante o acto, altivas, observadoras na sua carcomida existência à sublimação do homem lá num fundo comendo figos.

Papou-os à vez, carinhosamente, caridosamente lambidos até à pele, unhas peganhentas de tanto como os cabelos da barba ou o desvelo nas memórias corridas pelas mãos peganhentas de seu pai a dar-lhe figos à boca.

Rápido percebeu que dez tinham sido comidos com a força das duas mãos, tantos quantos os dedos que seguraram amavelmente a lembrança granulada e doce. Olhou as cascas desvairadas. Rangeu a madeira pela pena do fim. Escuro. Buscou vela e acendeu-a, buscou pão e juntou-lhe as peles e de olhos fechados tragou-as limpando as barbas aos fios de chuva e de algumas lágrimas.

Escuro lá fora, amarelo cá dentro, gemeu o sobrado e a porta de novo. Rios de água passavam a correr. Agachou-se e deixou partir o barco feito com o papel que lhe escondera os figos.


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