Quase 60 anos depois de ser dado à luz do mundo, Eme deixava cair a primeira urina da manhã enquanto expulsava o ruidoso ar da noite, raio! isto (menos o ar) parece linguagem de laboratório de análises clínicas, “traz a primeira urina da manhã neste recipiente e vem em jejum” Recomecemos…
Quase 60 anos depois de ser dado à luz do mundo, Eme saudava o dia com a mija e o traque iniciais, enquanto se interrogava por que acordara, não propriamente porque isso fosse novidade, sempre acordara nos outros dias passados (qualquer coisa como 21 mil e 900 dias, que a Eme, ainda surpreendido com a conta, pareciam poucos dias, habituado que estava a ouvir falar de milhões, fossem de euros ou de pobres, e também porque lhe parecia paradoxal que o tipo de ser vivo conhecido mais complexo, de que ele era um anónimo representante, não durasse em média mais de 30 mil dias), mas porque tinha dormido uma daquelas noites de um sono só, a sua cabeça estava leve e, sobretudo, porque, contra o costume, não tinha posto o relógio a despertar. Quer dizer, Eme não decidira acordar mas acordara.
Claro que era inevitável pensar que o seu corpo se tinha habituado a acordar mais ou menos àquela hora, ou que tinha a sua regulação própria, mas o que, de certo modo, incomodava Eme (enquanto executava com precisão - coisa que nem sempre acontecia - aquele gesto maquinal de aliviar a bexiga da pressão expansionista da vizinha próstata), era que ele, quer dizer, o seu eu, a sua consciência inteligente, o seu espírito, o seu livre-arbítrio, a sua vontade ou o que quisermos chamar-lhe, tinha sido, pura e simplesmente, subalternizado, para não dizer ignorado. Se tinha sido o seu corpo, pensava Eme, que o acordara e forçara ao gesto urinário, isso só poderia significar que o seu corpo era uma espécie de região autónoma (com a devida e reconhecida vénia a António Lobo Antunes) com pretensões independentistas. Ou seria mesmo independente de si?
Fosse como fosse, Eme experimentava a sensação nítida, embora algo desconfortável, de ser dois em um, umas vezes mandava ele, outras vezes mandava o outro que, doravante, bem poderia considerar ser o seu corpo. Em rigor, quando lhe perguntassem pela saúde, Eme poderia muito bem responder com outra pergunta: a saúde de quem? a minha ou a dele? a minha está bem, sinto-me muito bem hoje, eu e ele dormimos bem, isto deve querer dizer que a saúde do meu corpo também está boa, mas quem pode garantir isso? há uma fase em que os vírus ou os cancros são silenciosos, não comunicam connosco, com o nosso eu, quem sabe se no momento em que se está a responder que se “está bem, obrigado(a)”, o nosso corpo não contraíu já uma futura gripe ou uma doença sem remédio?
Como que para afastar este mau pensamento, Eme sacudiu as últimas gotas do longo arco líquido branco e amarelo (lembrem-se que não se tinha levantado de noite e que - isto ainda não havia sido dito - era uma daquelas manhãs em que o sexo masculino resolve tecnicamente afirmar-se independentemente do desejo) e abriu a janela (que dava para nascente da realidade). O dia prometia ser lúcido.
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