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01/05/22

UMA QUASE UTOPIA

António Mesquita
Filme de Fran Kranz de 2021



"Todas as mitologias e religiões politeístas são, de uma forma requintadíssima, ciências humanas, infinitamente mais rigorosas, eficazes e sensatas que aquilo a que damos actualmente esse nome."
 (Michel Serres, "A Origem da Geometria")


Depois de uma longa troca de cartas, os pais (Jay e Gail) de Evan, um estudante assassinado, num daqueles massacres que a proliferação das armas nos EUA torna tão frequentes, os pais do assassino (Linda e Richard), outro estudante, que se matou a seguir, aceitam encontrar-se numa pequena igreja episcopaliana da província.

A sala da "reunião" é preparada por dois jovens assistentes da congregação. Ela, em estado de exaltação neófita, ele casual e inexpressivo. Os lenços de papel, na expectativa de lacrimejo, café e bolinhos.

Vemos o primeiro casal chegar e fazer horas num descampado. Ambos tensos e cheios de dúvidas. Quando se confrontam com Linda e Richard, tudo isso se agrava, apesar da conversa informal para distender e se ambientarem. Desde logo, se percebe um tom de súplica em Linda e o marido, como se fosse óbvio que a tragédia fosse de algum modo da sua responsabilidade. A hostilidade de Gail resiste a todas as "explicações".

Ao fim de algum tempo todos tiveram ocasião de "explodir" , de saltar as conveniências e a linguagem controlada para mostrar a ferida insarável. Gail sente-se no direito de exigir uma vigilância retroactiva sobre a vida de Hayden. Desde quando o seu comportamento pareceu problemático, o que fizeram os pais, se deixaram as coisas evoluirem para o desastre, sem tentarem tudo, se o seu sofrimento foi comparável ao daqueles que perderam um filho com todo o futuro à sua frente.

Nada se aproxima dum apaziguamento, até que Linda pede a Gail uma história que represente o espírito de Evan, a sua maneira de ser, o seu sentido de humor. Ao tentar recordar-se do filho vivo, dum dos muitos momentos de alegria que há minutos pareciam perdidos para sempre porque estavam todos naquela sala engrenados na atribuição da culpa ou na desculpabilização, foi como se uma comporta se abrisse e um rio corresse para a foz.

Depois de contar a banalíssima história e do alívio que se seguiu, Gail confessa a sua necessidade de perdoar para poder viver consigo mesma e voltar a pensar em Evan como ele sempre foi. Jay acompanha-a nessa disposição. Parece que o encontro afinal valeu a pena. Quando se despedem, missão cumprida, dir-se-ia que tudo foi dito. Se não fosse o silêncio dos pais sobre Hayden. Como se o tivessem perdido duas vezes, por causa do massacre e por não serem capazes de se lembrarem dele senão na perspectiva do mal que causou aos outros e à família. É quando Linda volta atrás e pede para contar, por sua vez, uma história sobre o filho. Adivinha-se que é um dos muitos momentos em que o espírito traumatizado de Hayden revela o seu bloqueio e a sua miséria a ponto de ameaçar a mãe. Linda lamenta que depois disso tenha fechado a porta do seu quarto à chave. Preferia, hoje, que o filho a atacasse e como que explodisse nela. Depois dessa confissão e das lágrimas, as duas mulheres abraçam-se e a despedida é, desta vez, perfeita. Os lenços de papel tiveram a sua utilidade.

O título do filme em português é prosaico e não tem a ressonância do original: "Mass", missa. Há quem se susceptibilize por poder haver aqui uma insinuação de proselitismo religioso. Mas Missa é sacrifício simbólico e ideia de ressurreição. Evan e Hayden, vítima e assassino, são vítimas sacrificadas do caos impenetrável que é a outra face da nossa liberdade, e a compreensão disso só pode trazer o perdão e o regresso à vida.

Infelizmente, este perdão é uma esperança quase sempre infundada noutras circunstâncias em que o ódio e a guerra campeiam. Mais valia culpar os deuses como faziam os Gregos, em vez de arranjarmos os míseros substitutos que se pretendem livres e senhores da sua vontade.

"Mass" podia ser uma peça de teatro ou um filme de Bergman que poderá tê-lo inspirado.

É uma obra original sobre uma quase utopia que não podemos deixar de perseguir em qualquer tempo.



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