Marques da Silva
Habituáramo-nos àquele jogo de palavras. Não era um divertimento, era mais uma forma de diálogo, de conversar recordando o passado, talvez as melhores recordações de um tempo que já não voltava. Naquele dia, contudo, quando relembrava a passagem pela Patagónia, na manhã em que decidimos sair de Puerto Natales e viajar para Sul até Fuerte Bulnes e pouco após a saída da cidade, nos detivemos entre o espanto e a incredulidade face ao fulgor do nascer do dia, na fusão de cores que víamos desenharem-se entre a montanha, a água do golfo e os azuis do céu, que nos fizeram acreditar que cada lugar deste planeta tem momentos irrepetíveis, o teu rosto parecia contraído e com gravidade disseste, sim, o mundo em que vivemos tem uma natureza cativante que nos pode surpreender a cada instante, como na viagem a Ma’rib para deixarmos o olhar penetrar no tempo remoto do reino dos Sabeus e a sua rainha de Sabá, mas quiseste regressar pelos campos de Sirwah onde deixamos o nosso olhar parado, não pela beleza da paisagem que nos rodeava, mas pelas dezenas de crianças mutiladas pela guerra do grande príncipe Salman, que encontramos na entrada de uma aldeia sem nome e as que ainda tinham o corpo direito, aguardavam pela morte que a fome lhes trazia. Pela primeira vez, no nosso diálogo, a conversa esmoreceu e para tentar que prosseguisse tentei que a lembrança fosse para além do que os olhos vêem e se detivessem na música que podemos escutar. Nas margens do rio Salzach sentados com as pernas pendentes sobre as águas, ouvíamos serenamente a partitura “para Elisa” e disse-te que na leveza daqueles sons se percebia uma certa melancolia de Beethoven que quase roçava a tristeza como se o compositor ao mesmo tempo que pretendia ser alegre não acreditava que a sua música obtivesse o êxito da sedução. Tristeza que parece ainda mais evidente no seu “Silêncio”, mais prolongado e mais doloroso. Houve um intervalo antes de falares baixinho, quase sussurrante, Ulia Grómova era minha avó, uma adolescente que vivia na cidade de Krasnodon e também ela poderia ter escrito, “A manhã estava fria e serena. A claridade da aurora invernal atravessava a custo um vapor lívido. Não havia o mínimo movimento sobre a terra, ou no céu, não havia um som, ou sequer um sopro de vento, no imenso deserto branco que se estendia a perder de vista na sua frente e no qual as depressões das ravinas e os arbustos no flanco das colinas lançavam aqui e além, as suas manchas acinzentadas.” (1) Podia, mas não chegou a escrever, foi presa, torturada e lançada ao fundo de uma mina com dezenas de jovens como ela, por pretensos civilizadores que vieram de Ocidente, também tinham olhos azuis e cabelo louro e eram um esquadrão de protecção. Parece que estão de volta, acrescentaste. Lembrei-me ainda da viagem através do deserto sírio para visitarmos Palmira e como ao chegarmos li nas tuas expressões a delícia de imaginar a grandeza da humanidade na magnitude das suas construções que perduram milenarmente como mostra de um poder que pese embora a sua dimensão acabou na poeira do tempo. Na Palestina, disseste, existiam aldeias seculares até à chegada dos emigrantes judeus. Arrancaram oliveiras, expulsaram os habitantes e em muitos casos limparam literalmente essas aldeia da face da terra, deixaram de existir. Tudo em nome de um Deus inclemente, da história de um Livro feito de metáforas. O nosso planeta tem de facto paisagens extasiantes, sim, lugares para nunca esquecer, pessoas que sempre recordaremos, mas como na face oculta da Lua, tem também o poder perverso de uma minoria reinante que destrói a beleza em troca de uma riqueza obscena e criminosa. O nosso diálogo, desta vez, não se prolongou. É de facto, pungente, vivermos a beleza da vida, com tantos criminosos em nosso redor, desenhando e cercando os dias que vivemos.
(1) Alexei Fadéiev, “A Jovem Guarda”, Editorial Caminho, Lisboa, 1984
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