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01/04/22

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva





Hoje que tantos anos passaram, vejo com ternura esses dias que nos encontravam, olhando-nos de frente num cruzamento lento como se saboreássemos aqueles segundos de delícia. Que letícia aquela de te ver passar, de movimentar os dias levando-te em imagem sonhadora pelas acções da vida. Olho agora para a pele morena do teu rosto cansado, os traços de um tempo vivido ao longo desse percurso humano a que chamamos vida. Perscruto ainda no amendoado dos teus olhos aqueles sonhos que a memória ainda visita. A rua onde o nosso olhar murmurava mensagens de uma alegria infindável, ainda existe e até muitas daquelas casas que nos contemplavam resistem à passagem avassaladora do novo. A grande fábrica pereceu há muito, a casa da quinta, com a sua árvore soberba, ainda se ergue altaneira e altiva, pertença de uma burguesia recatada que, também ela, foi levada pela ânsia da ostentação. Já não encontro as buganvílias e as rosas que naquela Primavera enchiam de cor o espaço onde os nossos olhares trocavam mensagens de esperança. Aquela mistura de verdes, vermelhos e amarelos agarrados às paredes musgosas enfeitavam o cenário dos nossos encontros, mas por trás dos muros elevados de casas que já ruíram, percebem-se os verdes de árvores viçosas. Abril foi sempre um mês muito belo. Deixamos o Inverno para trás, os dias crescem como os nossos sonhos juvenis, a natureza explode em cor e luminosidade, tudo se conjugando para que os sorrisos brotem no rosto humano. Mas naquele ano, Abril trazia mensagens de liberdade, de coragem e de combate. Sim, a vida humana para ser vivida com dignidade, tem de trazer sempre essa componente de acção que impeça a maldade e a avareza de alcançarem objectivos obscenos. Naquela batalha de decência que se travava, a pureza do teu rosto, esse teu olhar que agora admiro na sua velhice, os teus longos cabelos negros, representavam o alento que permitia à alma erguer muros de resistência nas longas noites em que a mensagem de esperança, de incentivo, como uma campainha que soava clamando para que se rompesse a neblina que embargava a voz daqueles que acreditavam num outro mundo, mais humano e mais livre, rompesse as correntes do medo, da negritude em que os poderes maléficos mergulhavam o quotidiano do nosso povo secular. Ainda não sabíamos, mas um outro Abril se aproximava, mais puro, mais livre, mais solidário em que colectivamente diríamos daquele tempo, “Ontem apenas/fomos a voz sufocada/dum povo a dizer não quero;/fomos os bobos do rei/mastigando desespero.”*. Mas nos dias em que nos víamos, transformávamos em audácia as correntes que nos prendiam e quando à noite caminhava pelas ruas, subia e descia escadas espalhando recados, incentivos, apelos e sopros de vida e de humanidade, levava comigo a recordação da imagem que deixavas em mim naquele território povoado de silêncios, de um colorido que cobria de fantasia os ideais que o pensamento alimentava e o corpo impulsionava. Eras também tu, um símbolo de esperança de um mundo novo onde todos desejávamos viver. Enquanto os meus passos se escoavam num silêncio nocturno e clandestino, alimentava a alma com a tua recordação, preenchia o tempo com a lembrança da vivência que deixavas na tua passagem e soletrava as palavras do poema que então tanto entoávamos, “Só te peço que te ergas quando no meio da noite todos estiverem dormindo e que a tua voz ecoe terna vibrante e concisa nos becos desta cidade”**. A vida movia-se então pela pureza cristalina de nobres ideais. O futuro aparecia como ave liberta de ventos e tempestades e seguíamos embarcados numa nau rumando ao novo mundo. No final daquelas semanas de cansaço, do fragor das palavras soltas ao vento, despertando vontades e desejos, chegou o dia grande, um desses momentos em que a alma humana se supera para ultrapassar negros medos e rebenta com mordaças que há muito emudeciam a sua voz. Nesse dia, os nossos passos não se cruzaram, mas o teu rosto vivia em mim com tal intensidade que senti que caminhávamos lado a lado em direcção à praça grande. Ao chegarmos emudecemos com aquele anfiteatro pleno de gente como nós que marcavam presença em desafio aos senhores do mundo. Um silêncio esmagador deixava escutar o canto dos pássaros e alguns minutos após a nossa chegada, logo depois de os nossos olhos terem percorrido a extensão da avenida, aquele cartaz de coragem, de desafio, transportado por gente livre irrompeu do passeio para o centro da praça e os abutres sedentos de sangue, saíram das cavernas nocturnas onde se acoitavam e destravaram a alavanca do ódio e da violência, mas já não pareciam suficientes para conter aquele grito de futuro que os rodeava e só na aparência os faziam vencer. Lembras-te que unimos as nossas mãos e lançamos ao vento aquelas palavras todas que levávamos encostadas ao peito, guardadas e não escondidas, enquanto atravessámos a praça incólumes. No final, olhamos para o caminho percorrido e contrariamente ao cavaleiro teutónico que morreu de susto ao ver que tinha atravessado um lago gelado, nós erguemos os olhos e sentimo-nos vencedores. O negro poder de chumbo que nos amordaçava, temblava já no seu trono, num oscilar desequilibrado enquanto nós nos sentíamos como os blindados de Vassili Grossman a correr noite e dia a caminho de Rostov ***. Hoje, tudo é passado, até as palavras que os nossos olhos segredavam se perderam na longitude do tempo. Nos teus traços vetustos continuo a encontrar a beleza daquela época inesquecível. Para mim, o teu rosto não se alterou e continuas a guardar na profundidade oriental dos teus olhos, os sonhos e os ideais daqueles dias que olhamos e vivemos com a energia de quem se sentia imortal.


* https://www.musica-portuguesa.com/somos-livres-uma-gaivota-voava-ermelinda-duarte-letra/
** canção de António Macedo, “Só te peço que não pares”
*** Vassili Grossman, “Vida e Destino”

 

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