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01/02/22

A CÔR DA VACA

António Mesquita



"O Perdão", filme dos iranianos Maryam Moghadam (também a actriz principal) e Behtash Sanaeeha não é (apenas) um testemunho contra a pena capital.

Babak, o marido de Mina (Maryam Moghadam) é executado por alegadamente ter assassinado um homem. Mais tarde, vem-se a saber que uma das testemunhas é o verdadeiro assassino. 

Mina reclama das autoridades judiciais uma reparação, mas apenas lhe oferecem dinheiro, justificando o que  se passou pela "vontade de Allah".

Por ter recebido em sua casa um estranho, Reza, que se intitula amigo de Babek e vem pagar uma pretensa dívida, mas que, na verdade, é um dos três juízes que condenaram o seu marido à morte, o  sogro, patriarca da família, expulsa-a da casa em que vivia com a filha surda. Vamo-nos dando conta dos entraves que uma cultura misógina impõe às mulheres deste país.

O juíz "mascarado" faz tudo para se fazer perdoar: cede-lhe uma das suas casas, ajuda-a na defesa da custódia da filha que a família pretende retirar-lhe, acompanha-a, enfim, em todas as tribulações, como um "enviado do Céu". Mas o certo é que todo o seu esforço e a sua generosidade nunca são reportados à pessoa do juiz. Mina vem a ser confrontada com a verdade chocante de ter convivido com um dos autores do seu infortúnio. A sua reacção é a de cortar todos os contactos e abandonar com a filha a casa de Reza. O momento deste desenlace é magistralmente representado por uma cena imaginada em que o juiz cai por terra depois de beber um copo de leite envenenado, seguido da cena real em que apenas fica sentado na sua derrelicção  enquanto Mina sai porta fora.

É altura de comentar o lugar, no filme, da sura do Alcorão, conhecida por "Al-Bácara", a sura da vaca (o título original do filme é "Balada da vaca Branca".
 
O plano dum imenso átrio com uma vaca no centro aparece no princípio e no fim do filme. A epígrafe refere-se à mais extensa das suras (capítulos do Alcorão).
É, evidentemente, uma intrusão simbólica no contexto do filme.
O diálogo travado na "Al-Bácara" é entre Moisés e os israelitas.
Pela voz de Moisés, Deus quer que sacrifiquem uma vaca. Primeiro, o povo pergunta se Moisés está a gozar com eles, depois, o que é a vaca, a seguir,  de que cor é e, finalmente, como deve ser, "uma vez que todo o bovino nos parece igual". Só se conformam com a última resposta: "Ele diz que tem de ser uma vaca não treinada para o labor da terra ou para a rega dos campos; sem defeitos, sem manchas."
O que é que este regateio tem a ver com a história contada no filme?
O erro do sistema penal pode ser levado à conta dum sacrifício e, para isso, Babek devia ser inocente, isto é, "sem defeitos, sem manchas"?

Talvez que a história deste acto injusto não pudesse ser contada sem o enquadramento religioso.

O mito não nos ajuda a compreender. Basta que faça sentido num determinado contexto.

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