Marques da Silva
Após visitarmos certos lugares da
Terra não regressamos os mesmos, algo se altera dentro de nós que modifica a
forma de olhar e sentir o que nos rodeia. Seja na imensidão das florestas de
Kamchatka, na solidão das planícies da Patagónia ou em qualquer outro lugar, a
nossa alma não resiste a esse embate com o êxtase que nos rodeou e deixou a
transbordar o registo do olhar. Quando no desfiladeiro de Vrang paramos a meio
da tarde, sentados no meio desse nada que é a ausência humana, apercebemo-nos que
o que nos cerca vai penetrando em nós de tal forma que abala qualquer alicerce
de certeza que possamos possuir. A natureza excede-se no seu fulgor e revela
toda a sua exuberância que a mão humana não é capaz de reproduzir. Nada está a
mais, a totalidade que observamos parece construída na medida certa e a avareza
humana não tem lugar em tal cenário. Sentimo-nos num anfiteatro em que a
representação da beleza excede o imaginável. O pensamento retém-se sem
possibilidade de movimento enquanto percebemos o verdadeiro significado de
eternidade, de infinito, de idades milenares, nas quais o nosso tempo de vida
se revela uma insignificância. Não se escuta um som, o vento não sopra, o céu é
uma tela de azul vivo com manchas brancas e o correr das águas do Vnukut que
rasgam a terra cavando um fosso fazem também elas parte da decoração, da
composição de um todo harmónico que nos esmaga e impossibilita qualquer
tentativa de comparação. Não se equipara o irrepetível. Compreendemos que as
horas passam mas uma força que não controlamos mantém-nos sentados, estáticos,
sentimos medo que algo se quebre no momento de nos erguermos e quando por fim,
voltamos a caminhar, sabemos já que não voltaremos a ser os mesmos, que se
alteraram os conceitos de tempo, de urgência, de futuro e do modo com que
olhamos para a vida, tão breve, face à longitude da natureza. No regresso a
essa temporalidade da ansiedade, da procura do novo a todo o instante, sentimos
o peso da realidade que criamos como bem supremo face à magnitude da natureza,
sobretudo contra ela, alterando-a, tentando destruí-la nesse olvido de que o
ser humano faz parte do território e que agir contra este é agir contra si
próprio. Quando insistimos na nossa teimosia avara a resposta surge
contundente: “Vamos para eleições com
mais de 19 mil mortos às costas. Este número cheio de lutos impossíveis, este
número cheio de despedidas sem toque, este número, multiplicado vezes tantas as
dores que se cruzam em cada ser humano desaparecido, soma-se ao número de
mortes que aconteceram por se viver em pandemia, e não por doença covid. Ainda
dobram poucos sinos pelos que não aguentaram a tempestade psíquica de um
contexto sem precedentes ou pelos que, no cruzar infernal de gestão de dramas
familiares e laborais em pandemia, caíram no chão. Morreu muita gente. E houve
muita gente a morrer só e houve danos irreversíveis causados aos idosos, porque
salvar as suas vidas passou por condenar as suas vidas, tirar-lhes o mundo, a
sua gente, a garantia da sua sanidade mental, sim, por vezes em troca da vida
ficou a demência.”*. É a realidade a tombar sem apelo sobre todos pela mão
da ganância dos que acreditam poder decidir o destino da sociedade humana. Não
é a primeira vez que a humanidade está numa das suas curvas mais perigosas, nem
será a última. Estes filhos bastardos que cercam a vivência humana com os seus
exércitos guerreiros, o seu dinheiro sem lei e nos amordaçam o bem-estar vão
insistir na sua maré destruidora até que a Natureza imponha um basta definitivo
e remeta este capital desenfreado e mortal para ser incinerado nos fogos da
vida. Não é a primeira vez, mas talvez nunca tenha sido tão premente viver o
presente, desfrutar desse generoso prazer do que é a vida. Para que assim seja,
há sempre um momento do dia em que regressamos ao desfiladeiro de Vrang e
deixamos que pelo nosso olhar passem esses momentos de encantamento que se
podem encontrar nos lugares únicos da Terra. O futuro, esconde-se na próxima
curva da natureza que nos surge ao fundo da caminhada do presente e será sempre
uma incerteza, mas se vivermos hoje com a intensidade interior necessária, enfeitando
a alma com a alegria da vida, esse desconhecido do amanhã poderá continuar a
ser o conhecido de hoje.
* Isabel Moreira, crónica no Expresso de 04.12.21
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