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01/01/22

NO CORRER DOS DIAS

 Marques da Silva



Após visitarmos certos lugares da Terra não regressamos os mesmos, algo se altera dentro de nós que modifica a forma de olhar e sentir o que nos rodeia. Seja na imensidão das florestas de Kamchatka, na solidão das planícies da Patagónia ou em qualquer outro lugar, a nossa alma não resiste a esse embate com o êxtase que nos rodeou e deixou a transbordar o registo do olhar. Quando no desfiladeiro de Vrang paramos a meio da tarde, sentados no meio desse nada que é a ausência humana, apercebemo-nos que o que nos cerca vai penetrando em nós de tal forma que abala qualquer alicerce de certeza que possamos possuir. A natureza excede-se no seu fulgor e revela toda a sua exuberância que a mão humana não é capaz de reproduzir. Nada está a mais, a totalidade que observamos parece construída na medida certa e a avareza humana não tem lugar em tal cenário. Sentimo-nos num anfiteatro em que a representação da beleza excede o imaginável. O pensamento retém-se sem possibilidade de movimento enquanto percebemos o verdadeiro significado de eternidade, de infinito, de idades milenares, nas quais o nosso tempo de vida se revela uma insignificância. Não se escuta um som, o vento não sopra, o céu é uma tela de azul vivo com manchas brancas e o correr das águas do Vnukut que rasgam a terra cavando um fosso fazem também elas parte da decoração, da composição de um todo harmónico que nos esmaga e impossibilita qualquer tentativa de comparação. Não se equipara o irrepetível. Compreendemos que as horas passam mas uma força que não controlamos mantém-nos sentados, estáticos, sentimos medo que algo se quebre no momento de nos erguermos e quando por fim, voltamos a caminhar, sabemos já que não voltaremos a ser os mesmos, que se alteraram os conceitos de tempo, de urgência, de futuro e do modo com que olhamos para a vida, tão breve, face à longitude da natureza. No regresso a essa temporalidade da ansiedade, da procura do novo a todo o instante, sentimos o peso da realidade que criamos como bem supremo face à magnitude da natureza, sobretudo contra ela, alterando-a, tentando destruí-la nesse olvido de que o ser humano faz parte do território e que agir contra este é agir contra si próprio. Quando insistimos na nossa teimosia avara a resposta surge contundente: “Vamos para eleições com mais de 19 mil mortos às costas. Este número cheio de lutos impossíveis, este número cheio de despedidas sem toque, este número, multiplicado vezes tantas as dores que se cruzam em cada ser humano desaparecido, soma-se ao número de mortes que aconteceram por se viver em pandemia, e não por doença covid. Ainda dobram poucos sinos pelos que não aguentaram a tempestade psíquica de um contexto sem precedentes ou pelos que, no cruzar infernal de gestão de dramas familiares e laborais em pandemia, caíram no chão. Morreu muita gente. E houve muita gente a morrer só e houve danos irreversíveis causados aos idosos, porque salvar as suas vidas passou por condenar as suas vidas, tirar-lhes o mundo, a sua gente, a garantia da sua sanidade mental, sim, por vezes em troca da vida ficou a demência.”*. É a realidade a tombar sem apelo sobre todos pela mão da ganância dos que acreditam poder decidir o destino da sociedade humana. Não é a primeira vez que a humanidade está numa das suas curvas mais perigosas, nem será a última. Estes filhos bastardos que cercam a vivência humana com os seus exércitos guerreiros, o seu dinheiro sem lei e nos amordaçam o bem-estar vão insistir na sua maré destruidora até que a Natureza imponha um basta definitivo e remeta este capital desenfreado e mortal para ser incinerado nos fogos da vida. Não é a primeira vez, mas talvez nunca tenha sido tão premente viver o presente, desfrutar desse generoso prazer do que é a vida. Para que assim seja, há sempre um momento do dia em que regressamos ao desfiladeiro de Vrang e deixamos que pelo nosso olhar passem esses momentos de encantamento que se podem encontrar nos lugares únicos da Terra. O futuro, esconde-se na próxima curva da natureza que nos surge ao fundo da caminhada do presente e será sempre uma incerteza, mas se vivermos hoje com a intensidade interior necessária, enfeitando a alma com a alegria da vida, esse desconhecido do amanhã poderá continuar a ser o conhecido de hoje.  


* Isabel Moreira, crónica no Expresso de 04.12.21


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