01/11/21
NO CORRER DOS DIAS
Quantas vezes cada um de nós, acorda e decide partir, rumo ao horizonte, ao nada ou ao infinito e de vez em quando, esse sem destino, traz-nos de regresso. Assim, atravessei os rios todos, em direcção ao sul, quase sem olhar, sem ver e sem sentir. O rio dos amores, passeio-o na ponte de sempre, baixa, perto do leito quase tocando com as mãos nas terras do paul e fui contando os quilómetros que longo era o dia. O rio grande surgiu majestoso, imenso no seu grande caudal e senti a força das águas arrastando tempos e vontades. Atravessei-o na ponte mais extensa, longa e bela e de seguida deixei-me embalar pelo som que surgia dos campos de além. Acordei cedo quando o sol sorrateiro me chamou de mansinho e vista de cima a serra algarvia, repousava serena com o brilho dos raios solares a beijarem-lhe a face. Arbustos rasteiros, árvores baixas de copa redonda, pois naquela terra onde a nossa estrela sempre está presente, tanto calor, pesa, obrigando a vida a ficar perto do solo. Já não sei o que vi, entre montes e vales, subidas e descidas e rios de água lenta abrindo caminho com a fraqueza das suas levadas. A terra de horizonte aberto estava verde e a beleza da sua aridez era composta agora por um extenso tapete verdejante, como se alguém tivesse pintado a paisagem e no rumo ao norte fui coleccionando castelos, pois também na vida, os homens coleccionam, não só os seus castelos, como as suas muralhas, as suas ameias, as suas torres de menagem. Por fim, o cansaço já pouco deixava ver além do fio negro da estrada, nem o da vida, mas pensando nela, que o fim não tarda e quando o dia já quase não sorria, era apenas uma recordação do seu começo, a ponte mais amada, a mais elegante sobre o rio que nos habituamos a olhar e a sentir, e ali, a meio daquela travessia, onde podemos, ao mesmo tempo, ver o passado e o futuro, abraçando o presente, deixei que o tempo corresse aguardando a noite.
“OS CUS DE JUDAS”
Mário Martins
https://www.fnac.pt/Os-Cus-de-Judas-Edicao-Comemorativa-40-Anos-
“Felizmente que a tropa há-de torná-lo um homem.”
António Lobo Antunes
“Os Cus de Judas”
Nunca o “cagalhão” (cito), esse escandaloso
vocábulo do glossário português que no modo educado até custa pronunciar, devendo
ser dito em voz baixa e contar com a
cumplicidade de quem ouve, nunca tal expressão ou as correlativas “caretas de defecação”
(ibid.) me pareceram tão literárias como nesta dolorosa obra-prima autobiográfica
de António Lobo Antunes que, mais de 40 anos depois, me dispus a ler, mercê de
uma selecção, efectuada em 2016*, dos doze melhores livros de autores
portugueses dos últimos 100 anos.
O pano de fundo é o que, para os prosélitos
de um regime ancilosado, foi a gesta ultramarina, e para a generalidade da
população, a guerra colonial. Através do olhar arguto e culto do oficial médico
António Lobo Antunes no teatro de guerra de Angola, mas em cuja mente do grande
escritor que viria a ser perpassava a angústia de não conseguir escrever os romances
que nela já fervilhavam, é-nos dado o testemunho de uma tragédia que a ausência
de uma justificação moral tornara insuportável.
Os horrores de uma guerra, seja
ela justa ou injusta, são sempre horrores, mas a justificação moral da guerra contra a
loucura nazi, que absolveu todos os sacrifícios e alicerçou a vitória aliada, fez
toda a diferença para o anacronismo e iniquidade de uma guerra colonial que
tornou vão o sacrifício de tantos portugueses, e só poderia terminar, de uma
forma ou de outra, em derrota.
No palco da guerra, com o seu
cortejo de mortes, feridos e estropiados a que o “Doutor” tinha de acudir como
podia, justificando o coro dos “foda-se” e “caralho” (ibid.) nesses momentos
sanguíneos, cruzam-se as recordações da infância, a crónica da vida familiar, até sobrevir um profundo
desencantamento por tudo e por todos, a
começar por si próprio: “O tempo trouxe-nos a sabedoria da incredulidade e do
cinismo (…) e desconfiamos tanto da humanidade como de nós mesmos, por
conhecermos o egoísmo azedo do nosso carácter oculto sob as enganadoras
aparências de um verniz generoso.”
Desencanto pelas relações de
amizade esvaídas ”os amigos afastaram-se a pouco e pouco de mim, incomodados
pelo que consideravam uma ligeireza de sentimentos vizinha da vagabundagem
libertina”, ou por uma Lisboa (que) “mesmo a esta hora (nocturna), é uma cidade
tão desprovida de mistério como uma praia de nudistas”.
No regresso da guerra, uma tia decepcionada
sentencia: “- Estás mais magro. Sempre esperei que a tropa te tornasse um
homem, mas contigo não há nada a fazer.”. A despeito de medir o homem pela largueza
de ombros, talvez vislumbrasse a pertença do sobrinho “à dolorosa classe dos
inquietos tristes, eternamente à espera de uma explosão ou de um milagre”, que
o escritor haveria de confessar n’Os Cus de Judas’.
* Os 12 melhores livros portugueses dos
últimos 100 anos - Revista ESTANTE
DA DEMOCRACIA
EM MEMÓRIA DE CHE GUEVARA
Ernesto Guevara de la Serna, Che Guevara, nasceu em 14 de Junho
de 1928, em Rosário, Argentina. Formou-se em medicina na Universidade de Buenos
Aires e dedicou a sua vida a lutar contra a exploração das multinacionais e em
defesa de uma sociedade melhor. Foi comandante na gloriosa revolução cubana.
Desempenhou cargos políticos importantes no governo saído da revolução,
nas áreas militar, relações internacionais e economia e finanças.
Escreveu sobre processos de libertação, sobre economia e sobre
teoria marxista. Os seus ensaios sobre economia e marxismo são pouco
divulgados. Mas realizam-se cursos e seminários em diversos países,
nomeadamente em Universidades de Espanha sobre as suas obras teóricas.
A vida de Che Guevara tem sido tema de arte, cinema, de fotografia e de muita literatura.
Fez 54 anos que foi capturado pelas tropas bolivianas dirigidas
pela CIA e em 9 de Outubro de 1967 foi executado por fuzilamento. Os seus
restos mortais e de mais seis companheiros de luta foram depositados em 17 de
Outubro de 1997 na cidade de Santa Clara, em Cuba.
A Comissão Regional do Porto Contra o Bloqueio e de Solidariedade com o Povo de Cuba, em 1997, tomou a iniciativa de participar nas homenagens a Che Guevara, editando um álbum com dois desenhos sobre Che Guevara, de Álvaro Siza Vieira, e um texto dedicado a Che Guevara, de José Saramago. O álbum teve a direcção gráfica de Armando Alves.
O lançamento do álbum, que se realizou nos jardins do Pedro Cem,
teve a presença de um dos filhos de Che Guevara, Camilo Guevara. Na sua
passagem pela cidade do Porto, foi recebido pelos Presidentes das Câmaras
Municipais do Porto, Matosinhos e Vila Nova de Gaia, respectivamente Fernando
Gomes, Narciso Miranda e Luís Filipe Menezes.
Para recordar e dar a conhecer, publica-se o álbum.