01/01/21
O MAL NÃO EXISTE
António Mesquita
Quatro histórias sobre culpados sem culpa, à maneira atormentada de Dostoiewski. A primeira distingue-se, pela forma, de todas as outras. É um quotidiano cinzento entre o arrumar o carro ( as voltas do túnel não nos são poupadas), ajudar a sogra ou a mulher a tingir o cabelo e as compras no supermercado ou a cozinha em casa. Heshmat (Ehsan Mirhosseini), um normalíssimo cidadão, na aparência, levanta-se todos os dias às 3 da manhã, toma um duche e dirige-se para o emprego numa sala de controlo onde só tem de carregar num botão verde para que suceda o que veremos na sequência final: uma fila de corpos esperneando e perdendo urina. Que Heshmat mande sempre a mulher ao banco levantar o cheque do seu salário ou hesite diante dum semáforo verde é o único sinal dum escrúpulo ou resquício de culpa.
Na segunda, vemos uma caserna de milicianos que discutem por causa do banco do condenado à forca que um deles, Pouya (Kaveh Ahangar), se recusa a empurrar. Uns acham que a lei é o que é e só lhe resta cumprir. Outro oferece-se para o substituir por alguns milhões. Mas é da namorada e através do telemóvel que lhe chega o plano salvador. O roubo duma arma e os guardas algemados num armário numa fuga "tirada pelos cabelos" até à jovem que o espera num automóvel à saída do quartel.
Segue-se um pedaço de cinema do melhor que existe. Um jovem soldado, Javad (Mohammad Valizadegan), consegue uns dias de licença para visitar a namorada na montanha, com a intenção de lhe propor casamento. O idílio parece ter futuro, até que ele descobre que a família da rapariga está enlutada pela condenação à morte do professor da aldeia que era por todos admirado. Ao ver a sua fotografia tem um choque: é o homem que teve de matar para conseguir a licença. Não pode escondê-lo da amada, mas é o fim da relação.
O filme termina com a história de uma jovem, Darya (Baran Rasoulof, filha do realizador) que vem visitar os tios que vivem retirados no deserto criando colmeias. Ele é médico, mas nunca exerceu. Está a morrer e combinou com o irmão aproveitar a oportunidade para revelar o segredo das suas vidas: o homem do deserto é o verdadeiro pai de Darya. A reacção desta é recusar reconhecê-lo como pai e culpá-lo de transtornar por completo a sua vida.
Uma das personagens de Dostoiewski dizia que se Deus não existe, tudo é permitido. É uma maneira de ir ao encontro do título do filme.
Rasoulof explicou que o filme é sobre as pessoas "tomando responsabilidade" pelos seus actos e cada história baseia-se na sua experiência. Como se sabe, o seu país é campeão mundial em execuções. Faz toda a diferença "ser uma peça do sistema" e dar um pontapé no banco do enforcado.
Mohammad Rasoulof ganhou o Urso de Ouro de Melhor Filme no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim. O realizador não pôde estar presente por lhe ter sido recusado o visto para sair do Irão, enfrentando uma possível ordem de prisão por apresentar neste filme uma imagem "negativa" do seu país, na opinião das autoridades.
O "LUXO" DA DEMOCRACIA
Mário Martins
https://www.google.com/search?source=univ&tbm=isch&q=atenas+imagens
Está estabelecido que a democracia nasceu há 2500 anos na cidade-estado de Atenas, numa sociedade e num tempo em que um ponto de vista crítico sobre a escravatura ou sobre o papel da mulher seria considerado impertinente. A mensagem cristã de igualdade entre todos os seres humanos teria ainda de aguardar a passagem de cinco longos séculos para irromper da escuridão.
No entanto, as características da democracia ateniense não podiam ser mais diferentes das actuais. Segundo um didáctico artigo, publicado em 1998, (https://run.unl.pt/), do democrata e intelectual de nomeada que foi Mário Sottomayor Cardia, apenas uma pequena minoria da população podia (e devia) participar nas reuniões da assembleia política da cidade, onde as decisões eram tomadas por maioria e braço levantado, num modelo de democracia directa que não confiava na profissionalização da política, proibia a existência de facções ou partidos, e em que os cargos públicos eram preenchidos por sorteio entre os candidatos com mais de 30 anos.
Em todo o caso, o novo princípio está lá, o de que a fonte legítima do poder político é o conjunto dos cidadãos que integram uma sociedade.
Entretanto, a perspectiva histórica, que, inexoravelmente, mede a distância entre a teoria e a prática, diz-nos que a democracia ateniense durou menos de duas centúrias e que as democracias modernas não existem há mais tempo, o que significa que, no tempo histórico de milhares de anos, que atravessa várias civilizações e diversas formas de exercício do poder político, a democracia é a excepção e não a regra. E se atendermos ao que se passa na actualidade, em que, segundo dados de 2018 da revista inglesa “The Economist”, já citados nestas páginas, mais de metade da população mundial vive em regimes autoritários, e em que os regimes democráticos remanescentes sofrem uma enorme pressão, teremos a noção de quão rara e frágil é a democracia.
Sottomayor Cardia faz uma distinção entre Democracia Substantiva e Democracia Institucional. Enquanto aquela, diz, procura “a justa organização da vida em sociedade”, esta visa “a justa organização do exercício do poder político”. Para o autor, “a Democracia Substantiva foi assumida, no século XX, em formas extremas, pelos partidários da sociedade sem classes e, em formas moderadas, pelos defensores do Estado Providência ou da igualdade de oportunidades.” Daí concluindo que “A democracia aparece assim confundida com a ideia de justiça social: uma sociedade seria tanto mais democrática quanto maior fosse o nivelamento ou igualização das condições sociais.”
Não obstante, como a experiência histórica mostra, confundir a democracia com a justiça social (que é uma ideia necessária, mas utópica, na medida em que, no concreto, nunca é obra acabada), faz relegar para segundo plano o exercício do princípio de legitimação popular, em condições de liberdade, do poder político, quando, ao invés, seria desse exercício democrático que deveria resultar, em cada momento, a justiça social possível, animada pelo fim ideal de uma “justa organização da vida em sociedade”.
Mas, se a ideia de justiça social “em formas extremas” tende, na prática, a desvalorizar e suspender a democracia, a experiência também mostra que a descrença da sociedade na reparação de injustiças sociais para lá do aceitável, provoca a erosão e, no limite, o soçobro de um regime paradoxalmente fundado nas regras da liberdade e da maioria. Donde, mais do que qualquer outro regime, a viabilidade da democracia, dada a sua permanente exposição aos barómetros de opinião - classicamente alimentada pela liberdade de imprensa, mas hoje também sujeita a altos níveis de intoxicação e à superficialidade das redes sociais - e aos conflitos entre os diferentes interesses, careça de um delicado equilíbrio com a justiça social, ou seja, na terminologia de Cardia, com a Democracia Substantiva, sem a qual a Democracia Institucional se afunda. Nada, enfim, que o Nobel Saramago não tenha dito de outra maneira: "Sem democracia não pode haver direitos humanos, mas sem direitos humanos também não haverá democracia”.
Em democracia, tal como hoje é concebida - liberdade, sufrágio universal, igualdade perante a lei, separação e transitoriedade de poderes, laicidade -, nenhum indivíduo ou grupo tem legitimidade para exercer poder não delegado pelos cidadãos, seja qual for a razão ou intenção invocadas. Mas este modo de vida, afinal tão raro e precioso, é um “luxo” que precisa de ser bem cuidado e guardado dos que, de dentro ou de fora, querem acabar com ele. Porque há sempre “salvadores” à espreita…
NO CORRER DOS DIAS
Marques da Silva
Foste tu que me ensinaste que a beleza está no interior do nosso olhar, na profundidade que colocamos na observação e na qual transportamos para o nosso interior as formas e a estrutura do mundo. Conversávamos na doce serenidade de uma tarde de Primavera que findava, que lentamente descia para uma nova rotação terrestre. Caminhávamos no pátio dos laranjais em passos vagarosos e com o olhar fluindo ainda no êxtase da visita que realizáramos. Eram palavras sussurradas, as nossas, para estímulo do cérebro e da reflexão que fazíamos. Sentia a tua mão na minha, a ternura dos momentos perfeitos. Tornava-se difícil passar para o estádio seguinte, após três horas de visita ao interior da Mesquita de Córdova. Dizias então que Umberto Eco escreveu que para Tomás de Aquino a Beleza implicava três coisas: “a proporção, a integridade e a claritas” e esclarecias-me que a claritas significa “a clareza e a luminosidade” e acrescentavas na tua extensa cultura do saber que no século XIII, Roberto Grossatesta afirmava que “a Beleza é harmonia e conveniência de si para si mesma”. O nosso diálogo estendia-se assim por essas palavras tão belas de claritas, proporção, integridade e harmonia e nascia nos nossos sentimentos a incompreensão pela intolerância que os representantes de um Deus destruíram, desfiguraram, maltrataram, a beleza de um lugar, criado por representantes de um outro Deus, em homenagem ao que amavam. Estes procuraram no erguer de um património incutir-lhe a formosura e a harmonia com que viam o seu Deus. No interior do esplendor desta Mesquita foram-lhe incrustadas marcas severas de um ódio que deveria estar simplesmente ausente, abafado e esmagado por aqueles que violentaram o lugar de um Deus, que não sendo seu, era o Deus de outros como eles. Se no início, essas marcas, como feridas abertas no peito vivo de alguém, foram pouco significativas, com o intolerante bispo Alonso Manrique, a mesquita foi rasgada de tal forma que permanece sangrando até aos dias de hoje. E a tua voz soa de novo ao meu ouvido com essa serenidade que te conheço, de novo pela palavra de Umberto Eco quando escreveu que segundo Plotino, “a ideia de que o belo consiste, antes de mais, na proporção e que esta nasce de uma relação harmónica entre as várias partes de um todo” e foi quebrando essa proporção que os cristãos agiram, quiseram mutilar a beleza para desacreditar o Deus ali adorado. Da catedral, construída sobre o corpo latente e vibrante da Mesquita, se alguma beleza possui – e sem dúvida que a possui – desaparece quando observamos o crime impune que foi erguido sobre a Beleza do que foi arrasado. Abandonamos aquele recinto, perturbados, entristecidos e as nossas mãos nunca se desuniram, como se representassem esse elo que estabelecemos, como uma tentativa de impedir que outra maldade possa ferir com arrogância e malvadez a Beleza erigida como homenagem a Deuses que se acreditam, os mais belos, justos e perfeitos. Era já noite quando sentados numa esplanada, sentia no teu rosto essa inquietação pela visita da tarde. Em determinado momento, começas a falar com essa voz pausada que me faz sempre lembrar o canto da chamada para a oração a Deus perdendo-se nos confins das areias do deserto como uma nuvem invisível alcançando os crentes. «É impressionante como o Império Romano do Oriente sobrevive mil anos à queda de Roma, nessa Bizâncio antiga que viria a ser Constantinopla». Mantive o silêncio de saber escutar para melhor compreender e continuavas um raciocínio que desaguou na Catedral de Constantinopla. A Sagrada Sabedoria que foi Santa Sofia. Mil anos de construção é uma eternidade, sobretudo porque permitiu incorporar as diversas formas da Arte que foram surgindo nessa evolução contínua tão inerente ao ser humano. A observação extasiada da sua cúpula deixa-nos nesse transe da incredulidade que sempre nos traz a grandeza do inatingível. O Deus medieval aparece identificado com a luz. Numa época de noites escuras em que só o brilho galaxial do universo iluminava as sombras nocturnas, a luz irradiava de Deus. Não admira pois, que as grandes catedrais góticas, apareçam com rasgões estruturais fechados por vitrais de cores múltiplas onde predomina o azul do céu, deixem penetrar os imensos raios de luminosidade que descem do universo onde habita Deus. Deus deixou de entrar pela porta e irradia de forma substancial todo o espaço sagrado, provindo do alto e penetrando pelos diversos espaços abertos na pedra. É um mar de luz, um oceano de Deus, a iluminar os crentes. Santa Sofia resistiu aos séculos otomanos sem grandes alterações na sua arquitectura e no seu espaço e no século XX a Turquia moderna, transformou-a em museu. Em pleno século XXI, um infame Erdogan, um novo Alonso Manrique, por razões políticas, calculadas e pensadas para não perder adeptos e ferir o pensamento cristão cujos poderes aparecem tão ligados aos interesses capitalistas e que nem sempre atendem as paranoias do autocrata turco, transformou Santa Sofia numa mesquita. As alterações não têm significado destrutivo, é apenas no domínio do pensamento e da consciência, da harmonia e da formosura que dão razão à Beleza, que sentimos essa ocupação. Os cristãos, manifestaram tímidos protestos, quase não se escutaram no ferver do bulício da vida. Moralmente, não podem levar longe o seu verbo de contestação e a União Europeia que ilegitimamente colocou nos seus fundamentos valores cristãos – como se os muçulmanos há mil e quinhentos anos não façam parte da Europa -, e é sempre tão célere na crítica a situações que não lhe dizem respeito, quase omitiu o seu protesto, numa cumplicidade deplorável com o sátrapa de Ancara. Mas Santa Sofia é património da humanidade, é nosso de direito, não é de Erdogan nem da Turquia, é de todos os que amam a arte da beleza, do prazer do Belo, com o respeito devido aos espaços sagrados – aqui a arte mistura-se com a luz de Deus –, e para esses, a alma volta a sangrar pela intolerância da humanidade que não se respeita a si própria e sempre está disponível para ferir o outro naquilo que lhe é mais sagrado. Passam os séculos e os milénios, e os seres humanos teimam, em não aprender com os seus erros, a aceitar as malfeitorias dos impunes, dos intocáveis, dos miseráveis que sempre dominaram as instituições de poder para benefício próprio ou da classe que servem. Terminamos aquele dia em Córdova com essa mistura oposta de riqueza pelo Belo observado e pela tristeza da acção do poder humano em destruir ou sacrificar o que deveria ser sagrado. Seguimos pelas ruas quase silenciosas dessa Córdova medieval e as nossas mãos continuaram unidas, entrelaçadas para que a nossa Amizade fosse sempre o unir de duas ideias, dois pensamentos, e nunca a sobreposição de um sobre o outro.
As citações que aparecem, foram retiradas do livro, “História da Beleza” direcção de Umberto Eco, Difel, Lisboa, Outubro de 2009.
CARTA DO FILIPE
Manuel Joaquim
Às vezes, poucas palavras dizem muito. A pequena mensagem do Filipe, valorizando a família sobre as coisas materiais e a preocupação manifestada com o vírus, é importante.
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