Marques da Silva
17 de Março; Subitamente, mergulhamos num país de sombras, num cerco que se aperta em torno do corpo e da alma. Subitamente, sem rosto, instalou-se, sem olhar a fronteiras nem a povos e amedrontou-nos mesmo sem o vermos e sem o podermos olhar e quando o percebemos, assentou no interior dos nossos sentimentos e emoções, adulterando a vida, mergulhando de braços estendidos no que muitos acreditávamos ser a melhor vida de sempre e outros a felicidade nunca vista, cheia de crescimentos e de bens sempre tão necessários quanto supérfluos. Com os poderes de um senhor divinal, move-se por entre as fileiras dos que agora aguardam silenciosamente a entrada nos supermercados e aceitam sem queixume todas as proibições que vão chegando e se oferecem para deixar os sonhos suspensos. O futuro curvou-se sobre todos e encerrados em casa, olhamos quase atónitos o vento que corre no exterior. Enquanto os aviões baixam as asas já não alimentamos o pensamento para além da esquina mais próxima. Tudo parecia infinito até ao momento em que o porvir nos entrou pelo cérebro dentro e escureceu o olhar. Aguardamos, tentando inventar a vida que ontem não imaginávamos existir. A realidade superou a ficção.
19 de Março; Acordo com o ladrar dos cães. Os olhos abrem-se doridos e adormecem de novo. Quando saímos para a rua, há uma serenidade plena. Um carro passa como algo invulgar. Como não circulam automóveis nem pessoas, podemos olhar toda a extensão das artérias e parece que as árvores que as ladeiam nunca tinham existido. Na rua principal, a serenidade é substituída pelo silêncio. A serenidade, sentimo-la, o silêncio escutamo-lo. Por aqui já um nadinha mais de movimento, os automóveis deixam um rasto de ruído a que já não estamos habituados. Passa um de cada vez. Só quando o sonido de um se apaga, outro recomeça. No centro há mais gente e mais veículos e no Café só duas pessoas nos aguardam. Prosseguimos a marcha para a loja das raspadinhas, dos lápis e papéis que também entrega o correio. Aguardamos no exterior, em fila distanciada, sem que alguém ordene ou se queixe, como se há muito assim acontecesse. Descemos até à avenida do porto, o movimento automóvel aumenta, mas nada como há uma semana atrás. Vivemos agora num país diferente como se tivéssemos esquecido o outro. O autocarro surge em marcha muito moderada, dez minutos antes do horário. Pode-se escolher o lugar e as janelas superiores estão abertas para que o ar circule. Em casa, procura-se entretimento, com o jardim, com as árvores, na companhia dos cães, alegrados por uma presença tão constante. As necessidades dividem-se em duas, as físicas e as psicológicas. À tarde, saímos para satisfazer as segundas, as que nos vão permitir aguentar o cerco dentro dos muros da residência. De novo o autocarro. Somos o primeiro passageiro. Seguem-se mais três. A velocidade é baixa e nas paragens não está ninguém para levantar o braço. A viagem de cinquenta minutos é agora de trinta e cinco. Na estação Casa da Música os passageiros são escassos, as máquinas de aquisição e de validação dos bilhetes estão desactivadas, as portas abrem automaticamente e cada composição é formada por dois veículos para evitar a proximidade dos passageiros. No Campo 24 de Agosto não há filas nos semáforos vermelhos e há um silêncio de fundo a encher o ambiente. Olhamos para a Rua Duque da Terceira e constatamos que nunca a tínhamos observado até ao fundo Sem automóveis, é como um desenho em perspectiva. Na loja da Barbot compreendemos que estamos no mundo da guerra biológica. Ao atravessarmos o Jardim de S. Lázaro, aparece um personagem com uma máscara na testa, como se de uma nova marca de óculos se tratasse. Ao descermos a Rua Passos Manuel a surpresa aumenta quando constatamos que não há um único estabelecimento aberto. O paradigma ruiu de um momento para o outro. Não houve decretos, não há polícia nas ruas, nem blindados, ninguém a dar ordens, e subitamente, acordamos com uma nova ordem, da qual ninguém discorda, ninguém protesta, ninguém reclama, tudo se aceita com a naturalidade de quem já nasceu neste ambiente. Bastou um miserável vírus microscópico para arrasar uma ordem estabelecida ferreamente amparada por guardas pretorianas, de leis e armas. Santa Catarina, Sá da Bandeira, encerradas como se o dia se transformasse em noite. No Bazar Paris, encerrado, protegeu-nos o acaso. Na larga e aberta Avenida apenas os autocarros marcam presença. No regresso ao Metro, confirmamos o que antes pressentíramos. Não há grupos, apenas pessoas isoladas. Não há sorrisos, fala-se baixo como se estivéssemos clandestinos face ao invisível. O autocarro chega de novo adiantado. A viagem é feita como se de um expresso se tratasse, calma, quase sem paragens. À chegada o primeiro-ministro anuncia o aumento do silêncio, o recolhimento, o apertar do cerco. É como se vivêssemos um pesadelo para o qual fomos anestesiados e ainda não compreendêssemos o que está a ocorrer. Amanhã vai chover.
20 de Março; O dia amanhece com chuva como estava previsto. O medo é sempre irracional, tolhe-nos os sentidos, altera as emoções. É difícil não ter medo, mas podemos controlá-lo, domesticá-lo, e deixar apenas preocupações, as suficientes para termos cuidado, sermos preventivos nas acções. Saímos para ir ao hipermercado e as ruas mantêm o mesmo clima de ontem, tudo circula espaçadamente. Entra-se condicionado. As entradas têm de estar concordantes com as saídas. No interior, o número de pessoas é idêntico aos dias de paz. Carrinhos cheios, porque o mundo pode acabar, o que nos faz lembrar o título de uma obra do saudoso António Pina, Não é o fim do mundo, é apenas um pouco tarde. Os serviços de saúde de todo o mundo estão a ser postos à prova. No fim de tudo, vamos fazer contas, sobretudo com os incendiários que tentam colher dividendos da situação e todos os dias prognosticam o colapso do SNS. A justiça desde há muito está com a credibilidade no fundo do poço, mas os jornalistas não lhe ficam atrás. São verdadeiros pirómanos e as suas perguntas às autoridades, sanitárias ou outras, aparecem ao nível das dos alunos da primeira classe. A NATO não adia nem anula as suas grandes manobras militares, as quais obrigarão a transportar vinte mil soldados dos EUA para a Europa. Tudo em nome da defesa. Contra o vírus? Não, a defesa dos interesses da indústria de guerra. No mesmo tom, o governador do Banco de Portugal declarou numa entrevista que o governo tem de dar garantias públicas à Banca. E nós a pensarmos que estavam todos concentrados no vírus. Quis o acaso que a leitura de momento seja “Um Sentido para a Vida” de Antoine de Saint-Exupéry. O autor de “O Principezinho”, foi uma mistura de fascínio e mistério, numa vida curta com muitas viagens e aventuras. Nestas crónicas escolhidas, reflecte muito sobre a guerra e a paz, a natureza da humanidade, com a sua beleza e a sua maldade. Na frente de batalha da guerra civil espanhola, interroga-se sobre o porquê de morrer, sobre o que levou cada um daqueles soldados até à linha vermelha que separa a vida da morte. Nos seus relatos não nos fala do desenrolar da guerra, dos combates, mas apenas considerações sobre o que vê e o que ouve. Acabou por morrer no Verão de 1944, num voo de reconhecimento sobre o Sul da França. Fazia bom tempo e não se conhece a existência de actividade aérea do inimigo. O avião foi encontrado sessenta anos depois, mas ainda não se concluiu o porquê da sua queda. Foi misterioso até na morte. O dia mantém-se chuvoso e frio. A obrigação já não é apenas ficar em casa ou no seu território envolvente, é mesmo ficar em casa que a chuva não permite outro cenário. Itália vive uma catástrofe humanitária com os seus mais de quatro mil mortos, o que significa 8,5% do total de infectados. A nossa percentagem, por agora, não excede os 0,6%, o que no meio de tudo isto, é algo bom. O que mais custa é a falta do cimbalino, mas constou-nos que a padaria do bairro, vende café em copos de plástico. Amanhã vamos fazer a experiência.
21 de Março; O dia abre cinzento, com ar de chuva. No Café que agora é só padaria, confirmo que posso saborear um cimbalino, mas em copo de plástico, deixa de o ser, mas é café o que nas circunstâncias que vivemos é quase ouro. Percorro a marginal de carro para verificar se o totoloto me sorriu. Foi pequenino, o sorriso, não chegou a desunir os lábios, nem aos seis euros chegou. A possibilidade de chuva e o vento frio não deixavam usufruir do ar livre e entre aviões e comboios foi o dia passando. Entre a precaução e o medo, esquecemo-nos que as árvores se enchiam de folhas e flores, dizendo-nos que a Primavera chegou. Esquecemos como vimos esquecendo tudo o que tínhamos até há uma semana atrás e aceitamos este novo normal tão oposto ao que vivíamos. Será que vamos descobrir uma nova vida, aqueles que saírem vencedores desta intempérie? Mas no esquecimento que nos leva, a memória apagou o dia das florestas e o Dia da Poesia. Como nos permitimos olvidar as palavras poéticas que tanto nos podem ajudar nos dias que vivemos cercados? Mas não desejamos esquecer e aqui quero deixar essas palavras belas de Pedro Barroso, “Diz-me lua que és tão bela/ por entre silvas e rosas/ diz-me qual é o caminho/ Quero o caminho do tempo/ quero ter tempo para o caminho/ quer olhar-te devagar/ Diz-me lua que és antiga/ quais os segredos da vida/ e por onde procurar”. Ou de Carlos Oliveira, “Transpondo os versos vieste à minha vida/ e um rio abriu-se onde era areia e dor./ Porque chegaste à hora prometida/ aqui te deixo tudo, meu amor!”
22 de Março; Os dias tendem a repetir-se. Comprado pão e bebido o café, foi o regresso a casa, o deambular pelo jardim, pintar os painéis do muro, limpar o que tem de ser limpo e, de novo, os aviões e comboios. Só à noite viajamos pelas palavras. Após o almoço acabou finda a leitura de “Um Sentido para a Vida”, algo que muito precisamos neste momento. Iremos no final desta prova, voltar à loucura do comboio a alta velocidade? Tememos bem que sim. Vamos de novo acreditar que superamos esta prova e voltar à espiral de correr de um local para outro, de não conseguirmos escolher o caminho que nos serene a alma, nos reconforte o olhar e nos apazigue o medo. A humanidade e cada um de nós, merecemos melhor e muito mais. É uma dádiva os dias em que formos capazes de percorrer o litoral sem hora marcada, de caminharmos nos bosques no interior das montanhas e de nos sentarmos numa esplanada saboreando um café, deixando o olhar percorrer o horizonte enquanto vemos as gentes passando. A Itália prossegue mergulhada numa tragédia humana. A ajuda que esperava da Europa, chegou apenas da, China, da Rússia e de Cuba. Tão unidos que nós éramos, diziam-nos os que nos massacraram com défices e agora aceitam abdicar deles. A NATO, generosa reduziu as manobras militares, mas não as anulou. A Europa encerrada em casa, a ver os seus a morrer aos milhares enquanto outros milhares aguardam sobre a linha vermelha se vivem ou morrem e os generais estado-unidenses, só lhes preocupa brincar à guerra contra um inimigo inventado, mas que lhes permiti usufruir de um estatuto que de outra forma não valeria nada. No meio do drama, aparece como de positivo, a saliência destas maldades e malfeitorias.
23 de Março; Os dias repetem-se e os acontecimentos que nos rodeiam provêm do exterior, de perto e de longe. Para além da ida ao pão e ao café, dos arranjos do jardim e dos aviões e comboios, sonhamos com as montanhas, os caminhos que no Sábado não chegamos a percorrer e já só vislumbramos esse horizonte que acontecerá no primeiro dia que tenhamos vencido este medo que nos cerca e atemoriza. A travessia dos bosques, das linhas de água e o olhar sempre perdido no alto da fraga com aquele ponto sempre miraculosamente branco. E o longe se fará perto. Ao amanhecer as ruas do bairro apresentam-se com uma serenidade profunda e quando um carro passa, é como algo de estranho ocorresse, perturba-nos o som do motor. Depois dilui-se com o afastamento e tudo retorna a uma tranquilidade plena. Fazer fila para o pão, já nem sequer é tema, é apenas um acto de normalidade. É interessante que aquando dos ataques bombistas, os europeus diziam, «não nos vamos deixar atemorizar, querem instalar o medo, mas vamos continuar a sair à rua e a fazer a nossa vida normal» e agora, sem bombas, sem violência, sem ordens e decretos, deixamos as ruas vazias, se não estamos atemorizados, estamos preocupados e não sabemos quando regressará a normalidade às nossas vidas. Ao ruído ensurdecedor em que vivíamos, sucede agora um silêncio profundo. À cidade enorme, sucede agora uma aldeia de sossego.
24 de Março; O que mais tarde iremos recordar com apreço, é a profunda serenidade que usufruímos nos trezentos metros de caminho até à padaria quando o dia começa. Certamente será irrepetível nos dias que se seguirão. Como as leituras ocorrem ao acaso, a que actualmente praticamos tem por título, A Sabedoria Secreta da Natureza, através da qual nos é mostrada a grande complexidade das florestas, do equilíbrio, por vezes frágil, em que evoluem e se desenvolvem e, quando a intervenção humana ocorre, o desastre aproxima-se, ou como inúmeras vezes acontece, se revela destruidora. Os dias continuam muito idênticos com as preocupações sempre acrescidas sobre a evolução da infecção no nosso país, a qual permanece sob controlo com grande esforço de todas as pessoas do serviço nacional de saúde a darem o melhor dos seus conhecimentos e de si próprios. Em Espanha e na Itália, continuamos a observar os dramas humanos que vivem esses Estados.
15 de Abril; Dos dias do medo há dois aspectos que vou sempre reter: a serenidade, a imensa serenidade do amanhecer que nos refresca a alma e nos alivia o pensamento, e o frio, esse frio cortante que chega pela tarde e se prolonga pela noite que varre o ambiente e nos devasta o corpo. Hoje, porém, o sol abriu sem vento, também ele em acalmia e foi aquecendo um pouco. A brisa chegou pela tarde, mas não arrefeceu, nem amainou a luminosidade solar. Com o aproximar do crepúsculo, arrefeceu e agora que os dias são longos, não podemos usufruir em pleno essa extensão da luz diurna. As árvores insistem em florir, encher-se de folhas verdes, e os pessegueiros de flor. É possível que os frutos cheguem nos meses de sempre, sem paragens. As roseiras também não obedeceram ao recolhimento e a cada dia, uma atrás da outra abrem as suas pétalas de fogo. Na natureza tudo parece continuar ordenado, enquanto a sociedade se voltou do avesso e navega um pouco sem rumo, por não conhecer o destino. Nas trirremes gregas, haviam três elementos decisivos, os remadores, o homem que comandava o ritmo e o comandante que orientava o rumo. A nossa trirreme está parada, os remos pousam na água, mas estão estagnados e o comandante não sabe para onde ir. Aguardam-se novos ventos, mas os que se anunciam, são de tempestade. Permanecemos cercados, sem ver o inimigo, mas este trepa as muralhas, passeia-se pelo castelo, sem licença e sem freio. Em três meses podemos acreditar que já vimos de quase tudo, cidades desertas, transportes vazios, comboios da morte, e mortos carregados por empilhador. Sucumbem aos milhares por terras que recordávamos com delícia, pela beleza, tranquilidade e bem-estar. O nosso sonho que seguia num impulso ascendente, jaz moribundo, num lago seco, cheio apenas de silêncio dos que partiram e dos que aguardam ansiosos para conhecer o seu futuro. Foi um vulcão calado que nos devastou tudo o que acreditávamos (?) como certo e definitivo e, de momento, até nos recusamos em pensar no amanhã.
16 de Abril; O tempo agora é de oposições. Quanto mais afastados, mais próximos estamos, quanto mais longe, mais solidários, todos juntos numa só força mas cada um em sua casa. Aguardamos com ansiedade contida que o gráfico que apresenta o número daqueles que o inimigo alcançou, inicie a sua descida, quanto mais abrupta, mais tranquilizadora, contrariamente aos donos do dinheiro e do mundo que entram em pânico quando o gráfico dos seus interesses espúrios se apresenta assim, a descer, nesse campo de extermínio social a que chamam bolsa. A alegria dos cidadãos é o terror daqueles que os atormentam, com as suas ganâncias, os seus lucros desmedidos, a sua obscena riqueza, pelo que bem podemos dizer, viva a alegria, e assim, enquanto a espera se prolonga, sonhamos com “A Festa da Vida” de José Niza, “Que venha o sol o vinho as flores / Marés canções todas as cores / Guerras esquecidas por amores; / Que venham já trazendo abraços / Vistam sorrisos de palhaços / Esqueçam tristezas e cansaços; / Que tragam todos os festejos / E ninguém se esqueça de beijos / Que tragam prendas de alegria / E a festa dure até ser dia;”. Apesar da insídia do inimigo, os seus assaltos parecem estar a perder força. Resistimos na barreira da esperança e sem dúvida que vamos vencer com o desejo de que este planeta onde estamos, mude de forma transformadora a vida daqueles que nele habitam.
18 de Abril; Vivemos tempos de sonhar o impossível. Os nossos olhos repousam sobre as águas de azul vivo e luminoso do Lago Maggiore. Sente-se a calma e tranquilidade dos momentos irrepetíveis. Sobre a outra margem descansa uma nebulosidade de Monet a encher de fantasia o que vemos e um pouco adiante, as alturas alpinas emolduram este quadro de um maravilhoso divino. Mas o devaneio, subitamente dá lugar ao pesadelo e ao olharmos mais longe, para a Lombardia, para a bela e surpreendente Toscana com os seus fins de tarde soberbos entre o real e a ficção, ou ainda para as ruas da Sereníssima, vemos os mortos que se acumulam às centenas diárias, os fogos que os incineram e os comboios que os transportam, em Paris já não é só a Notre-Dame que arde, mas também as cidades e aldeias, desde o Loire até à terra dos Cátaros, em Espanha, já não são os ventos de Guadarrama que fustigam a capital, mas antes a insanidade de um inimigo cruel e desapiedado que semeia ondas de morte onde o mar não existe. No Equador com os campos santos esgotados, os mortos aguardam na rua que os levem. Olhamos paralisados para um acontecimento que ultrapassou a imaginação mais delirante e sentimos a fragilidade da nossa inteligência a dobrar-se perante a força do desconhecido e já só perguntamos, até quando seremos capazes de resistir?
25 de Abril; Se o vírus maléfico nos cerceou a liberdade, um outro vírus, não menos letal, tentou privar-nos de outra liberdade, a da alegria de poder festejar o dia que nos permitiu chegar aqui com as instituições que nos permitem hoje resistir ao desconhecido. Verdadeiramente, a maldade humana não tem limites e mesmo no meio de tanta dor e drama, consegue trazer os seus interesses espúrios por cima dos escombros.
28 de Abril; Escrevo de um tempo que já não existe. Será que ainda lembramos quando os encontros se marcavam no Café? Quando se ia ao Café depois do almoço e se ficava a conversar pela tarde dentro? Quando se estudava nos Cafés? Quando os contratos se tratavam nos restaurantes, ou se comemoravam datas e festejos em almoços de 20 ou 30? Quando na rua podíamos ver o sorriso de uma mulher? É desse tempo que ainda escrevo, mas já não existe. Levou-o o vento ou o espirro de um vírus no fim de um Inverno que parecia não acabar. A Primavera ainda viu as árvores cobrirem-se de flor e de folhas, talvez até dêem frutos, mas em seu redor tudo perdeu a forma do passado e ainda não desenhou a do futuro.
30 Abril; Dizem-nos que vai ficar tudo bem, mas não vai. A segunda parte pode transformar-se num processo social e economicamente traumático e, entre o desemprego e o aumento de impostos, vai ser um vírus tão letal como este. Dizem ainda as mentes esclarecidas que a sociedade vai mudar, não ser possível viver à velocidade anterior, que o isolamento fez-nos ver valores esquecidos esmagados pela voracidade do presente sem cuidar do futuro, que ao crescimento constante, deve sobrepor-se um desenvolvimento saudável. Nos primeiros meses é certo que o comportamento pessoal vai mudar, mas se reflectirmos sobre um horizonte ligeiramente mais distante, saberemos que, nem os 3 000 000 de infectados, nem os mais de 150 000 mortos, são números suficientes para alterar a sofreguidão gananciosa desse 1% da humanidade (?!) que oprime os restantes 99%.
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