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01/01/20

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O HÁBITO DA POBREZA

Mário Martins
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Constituiria, decerto, uma enorme decepção se as promessas políticas que por aí circulam, sob pressão, é justo dizer, do Presidente da República, de pôr fim, nos próximos quatro anos, à chaga social das pessoas que vivem no lado de fora das casas, os chamados “sem abrigo”, não fossem concretizadas; não que não estejamos já habituados, nós e os povos mais ricos, a tolerar essa espécie de escara no corpo social; mas por uma razão de moral ou de decência, quer dizer, por uma razão não económica.

E se, uma vez concluída com êxito essa missão, o Presidente da República tivesse a ousadia de lançar o repto à sociedade de pôr, igualmente, fim à pobreza? Uma vez erradicada, de forma consistente, a miséria social dos “sem abrigo”, esse novo e mais amplo objectivo soaria menos romântico e utópico, apesar do hábito enraizado na tradição ancestral da existência de pobreza, aqui e no mundo. 

Diz-se que Otelo, no auge da revolução de 1974, terá dito ao político social-democrata sueco, Olof Palme, mais tarde assassinado, que pretendiam, em Portugal, acabar com os ricos, e que o sueco terá respondido que, lá, pretendiam acabar com os pobres. Precisamente, não se trataria, aqui e agora, de acabar com os ricos, nem de pôr em causa a propriedade privada, a livre iniciativa económica, a ambição e capacidade de cada um, ou as diferenças baseadas no mérito ou no meio familiar, nem de acabar com as disputas sociais por melhores condições de vida e uma distribuição mais justa. Goste-se ou não, a experiência mostra que as sociedades humanas modernas funcionam melhor assim. Tratar-se-ia, antes, de garantir que ninguém aufira um rendimento inferior ao do chamado limiar da pobreza.

Esta, a pobreza, está, em Portugal, oficialmente medida: em 2018, era pobre quem auferia um rendimento anual inferior a 6.014 euros (Pordata), ou seja, cerca de 500 euros por mês. Pelos dados do Instituto Nacional de Estatística (Jornal Público 2019-10-16), somavam, em 2017, 1,8 milhões as pessoas nesta situação. Mesmo admitindo, sem conceder, que aquele valor é o adequado para definir quem é pobre, e que descontemos o efeito da economia paralela, haverá, seguramente, em Portugal, bem mais de 1 milhão de pobres. Na União Europeia serão 100 milhões. É uma realidade que deveria envergonhar e fazer agir qualquer sociedade, sobretudo as mais ricas, não fosse o hábito um sério obstáculo.

Mau grado uma mente decerto tão brilhante quanto ideologicamente dura como a do Dr. Ferraz da Costa, histórico dirigente da CIP e actual presidente do Fórum para a Competitividade, defender, a propósito da actualização do salário mínimo, o primado da produtividade, um objectivo nobre como o de erradicar a pobreza, não pode depender do crescimento económico, ou do aumento da produtividade, ou da artificial viabilidade de empresas que, eventualmente, não podem pagar o salário mínimo; a experiência também mostra que o “mercado”, por si só, é incompetente para resolver as injustiças e as crises mais graves e para erradicar a pobreza. A fatalidade de ser pobre deve depender de outra coisa que o senador Robert Kennedy, em 1968, antes de ser assassinado, chocado com a pobreza que presenciara no estado do Mississipi, no decurso da sua campanha para a nomeação democrata do candidato à presidência americana, sublinhou em tom de desafio: “Sabemos que existe um problema e que temos o dinheiro e os recursos. O que é que vamos fazer?”

A pergunta, em Portugal ou em qualquer outra parte, é: temos dinheiro e recursos para acabar com a pobreza? ou, dito de outro modo, a riqueza produzida é suficiente para que ninguém viva abaixo da linha de pobreza? se é, então não é um problema de produtividade, mas sim de distribuição, através do salário mínimo, da pensão mínima, e das transferências sociais por via fiscal progressiva.

Ou a sociedade civil age ou os poderes públicos não sentirão a premência em agir, porque é eterna a invocação de limites orçamentais, limites esses mais evidentes para domínios sociais sensíveis para o comum dos cidadãos, da saúde à segurança, do combate à pobreza à educação”, afirmou, com razão, o Presidente da República, no contexto da reclamação de apoio do estado à comunicação social.

Se este objectivo, perfeitamente exequível e não utópico, de erradicar a pobreza em Portugal fosse alcançado a médio prazo, a “Ronaldolândia” bem poderia orgulhar-se disso e Marcelo asseguraria um merecido lugar à parte na memória da posteridade.

Caso contrário, aqui como em outros lugares, a sociedade civil mais sofrida e activa voltará a vestir a farda marcial amarela…

O ESCURO EMOCIONANTE

António Mesquita
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O que é que se perde em ver um filme concebido para prender, digamos, por duas horas, a atenção do espectador, quando o podemos ver como às vezes lemos um livro, em vários tempos, de concentração ou pressa, lendo, como se diz, "em diagonal", e se tivermos esquecido alguma coisa do trecho que lemos antes, voltar atrás para entender a sequência?

É preciso acrescentar que a serialização vem já do princípio do cinema e que hoje, graças à televisão, seguir o enredo em episódios faz parte do nosso quotidiano. A narrativa, como se percebe, é muito condicionada por esta divisão da história e as técnicas de aguçar o apetite para o próximo capítulo são a norma. 

Tudo isto vem a propósito da concorrência que a Netflix e outras plataformas semelhantes estão a fazer a Hollywood e à grande produção, a montante, e às salas de cinema, na distribuição. O primeiro grande sinal desse fenómeno foi, sem dúvida, o último filme de Martin Scorcese, "The Irishman" e, também "Marriage Story", de Noah Baumbach, ambos de 2019.

Como o primeiro se trata duma película de mais de três horas de duração (o qual, se fosse exibido em certas salas, nem sequer teria intervalo), pude vê-lo, tranquilamento em três arremetidas, sem qualquer constrangimento da bexiga. O que perdi?

Em primeiro lugar, o sentimento de estar a participar numa espécie de cerimónia colectiva que não exclui o contágio emocional. Numa disciplina do espectáculo que, quer se queira quer não, ajuda a manter a atenção focada. Não nos sentimos tentados a "esticar as pernas" ou a pegar no telemóvel. Mas é verdade que o cinema já não é o que era, com tantas sessões despovoadas e que nos dão, pelo contrário, a sensação de privilégio, de usufruirmos sozinhos, ou quase,  da "lanterna mágica".  

A televisão, por outro lado, já nos habituou a vermos cinema, num pequeno écrã, é certo, mas igualmente disponível, através da gravação, para o vermos "à la carte" e sem anúncios, os quais podemos passar a correr. Foi a primeira domesticação do cinema.

Tudo somado, a experiência do "streaming", essa possibilidade de ter em casa uma espécie de torneira para o serviço da arte vai no sentido duma sociedade atomizada em que o indivíduo ou a célula familiar parecem ser o mais importante. 

É, afinal, enquanto consumidor que o indivíduo é solicitado a ver cinema no novo regime. Mas o espectáculo colectivo, o cinema das enchentes doutros tempos, era mais do que um fenómeno de consumo, apesar da publicidade e do comércio envolvido. A nostalgia desse cinema é daí que vem. A presença dos outros, embora motivada pela mesma coisa, transcendia o espectáculo.

É por isso que se pode dizer que o "streaming" nos dá a ver cinema,  qualquer que seja a sua qualidade, e nada mais do que isso. Vêmo-lo com os nossos olhos e os demais sentidos, mas perdemos o sentido de fazermos parte, de alguma maneira, de sairmos de nós mesmos.

O paradoxo é que a mesma revolução tecnológica  que produz estes efeitos de "privatização", permitindo-me ver em casa o filme que quero, como quero, nos oferece, por outro lado, no fenómeno das redes sociais uma espécie de retribalização da sociedade. Mas faltam a essas redes  algumas dimensões essenciais da presença viva, como faltam ao cinema  visto em casa.

Não me custa a acreditar, porém, que quem nunca conheceu o escuro emocionante de uma sala cheia nem saberá a diferença.



AS ELEIÇÕES INGLESAS

Manuel Joaquim

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No Reino Unido realizaram-se eleições antecipadas no passado dia 12 de Dezembro, quinta-feira, dia de semana, dia normal de trabalho. 

A comunicação social apresentou-nos os resultados como um “sismo conservador”, “resultados arrasadores”, “pior resultado do Labour em 84 anos”, “ O Brexit no forno”, etc.

Quem leu ou ouviu as notícias ficou completamente atónito com os resultados eleitorais, pensando que os conservadores dominam completamente a vida política e social no Reino Unido.

A campanha enfurecida desencadeada contra o Partido Trabalhista e, principalmente, contra o seu dirigente Jeremy Corbyn, por defender claramente uma política de nacionalizações, desde a água, a electricidade, o gás, os caminhos-de-ferro, campanha essa apoiada dentro do próprio Partido Trabalhista, liderada por um dos responsáveis pelo início da guerra no Iraque, pretendia e pretende isolar ideias que questionam o poder dominante. 

O programa eleitoral defendido por Corbyn respondia a intenções da maioria dos eleitores ingleses, manifestadas em sucessivas sondagens, pela degradação e prejuízos causados nas populações com a privatização desses sectores. 

A hesitação do Partido Trabalhista em decidir sobre o Brexit, que contrariamente ao que nos tentaram impingir de que o resultado do referendo tinha sido um erro porque as pessoas enganaram-se, veio prejudicar a sua votação. Os trabalhadores industriais, com fábricas a fechar e situações de desemprego a alastrar, as populações do interior com as condições de vida a piorar, defendiam o Brexit. A campanha eleitoral foi dominada pelo Brexit e não pelas condições de vida. Os senhores da União Europeia aperceberam-se da situação e se inicialmente não negociavam mais, vieram dar o dito pelo não dito e passaram a negociar e dar novos prazos, evitando a discussão dos problemas internos. Um olhar atento permite observar a existência de grandes lutas políticas a todos os níveis. 

Votar a um dia de trabalho não é a mesma coisa que votar em dia feriado ou ao domingo. Cada um dos 650 distritos eleitorais elege um parlamentar, que é do partido mais votado. Todos os restantes votos, mesmo que tenha menos um voto, vão para o lixo. Se existisse método proporcional, condições democráticas iguais às nossas, o Partido Conservador não teria maioria absoluta. É importante dizer, por não ser claramente referido, que o Partido Brexit desistiu em 317 círculos eleitorais a favor do Partido Conservador. 

Mas vamos aos resultados apurados. 

Número de eleitores 48,9 milhões

Partido Conservador – 13 966 565 votos – 43,63% - 365 lugares

Partido Trabalhista – 10 269 076 votos – 32,16% - 203 lugares

Partido Nacional Escocês – 1 242 372 votos - 3,88% - 48 lugares

Liberal Democratas – 3 696 423 votos – 11,55% - 11 lugares

Partido Verde – 865 69 votos – 2,7% - 1 lugar

Partido Brexit – 642 323 votos – 0 lugar

Outros partidos 

O Partido Conservador subiu 1,2% comparativamente aos resultados de 2017, o que não corresponde ao que nos pretendem fazer acreditar. 

Naturalmente que a luta política vai aquecer pois os problemas agravam-se continuamente e o Partido Conservador que governa a Inglaterra desde 2010 não tem as soluções na manga.

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva
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A Gioconda de Leonardo Da Vinci


Sei que prometi que este mês te escreveria uma carta. Não uma mais, antes uma diferente, talvez especial, dessas letras que falam da beleza da vida e do mundo, da humanidade e dos gestos, de emoções e dos sentimentos mais sublimes e, do amor, naturalmente. Como se poderia escrever sobre a beleza sem insinuar o amor no seu interior, esse afecto que une os amantes! Mas a minha promessa foi num tempo que sabia distinguir o passado do futuro, o ontem do amanhã, a realidade dos sonhos. Foi antes desse vendaval que misturou tudo na minha memória. Num tempo anterior aos delírios que ora me levam, como naquele dia em que acreditei que viajava entre a nebulosa de Andrómeda e a galáxia M28. Quando o desvario abrandou, constatei que apenas mudava de uma linha do Metro para outra. Vivo assim, misturando os tempos e no momento de iniciar a carta que prometi, já não sei onde me encontro, nem no tempo que passa nem naquele em que vivo. Procurei então nas notícias dos dias, a inspiração que me faltava, mas a primeira que chegou até mim, deixou-me nessa tristeza infinita que é o desacreditar na humanidade, ou expresso de outra forma, naqueles que em nome de todos, dirigem os destinos do mundo, para o seu próprio interesse, para satisfação das suas vaidades, para encherem as tulhas de gente sem rosto. A maldade humana no esplendor do poder. Abandonei então a ideia de um diário para ti com o noticiário dos acontecimentos quotidianos. Estava perdido, entre a promessa e a minha incapacidade. Olhava à volta e não vislumbrava caminho onde pudesse fazer passear as palavras que me levariam ao teu encontro. Ainda pensei no mês dos pobrezinhos, mas já todos se debruçavam sobre o assunto, até o presidente da república. Lobo Antunes disse um dia que no seu tempo de criança todas as famílias de bem tinham um pobrezinho, o seu pobrezinho, que todas as semanas visitava a casa dos seus benfeitores para levar as sobras e os restos. Claro que a democracia deu dignidade às pessoas, mas nem quero pensar quantas delas perderiam o emprego se acabassem os pobrezinhos. São eles a garantia de que estamos bem. Também não era esta passagem que me faria chegar até ti. Entrei então na minha desmemória da vida, nesse espaço onde vagueio, sem lugar nem nome. Procurava nos atalhos do passado, a direcção em que corriam os rios quando o teu sorriso dominava tudo e enchia de luz o universo, essa luz que era o guia que segurava as estrelas na sua rota. Que faço eu nesta mesa, olhando o outro lado onde te vejo sentada, altiva e bela, com o olhar perscrutando um horizonte indefinido. O teu rosto move-se vagaroso, como quem procura tempo para assimilar, não o que vê, mas o que pensa. Sim, o teu pensamento viaja para outro lugar e outros acontecimentos ou pessoas. É visível a tua ausência. É nesse instante que a tua boca esboça um sorriso e ocorre-me pensar na Gioconda, naquele enigmatismo que nos fascina e atrai. Estou preso nessa beleza que irradia desse rosto que se volta na minha direcção sem me ver. Acordo quando o ano terminou os seus dias e renasce outro com a contagem a zero e de novo nos alimenta a esperança de que este ano…, sim, este ano, vai ser distinto, vou realizar os meus sonhos, vou alcançar os meus desejos, vou cumprir as minhas metas, não vou deixar que os meus planos se esfarelem nas primeiras curvas da estrada da vida. Entre todos os trajectos aparece-me o teu, com o esplendor radiante do teu olhar nefertiniano, belo, apaziguador, fixo no futuro, nesse fausto que a grandeza do teu rosto carregado dessa imensa perfeição, nos confunde, atormenta, encanta e nos faz amar-te. É esse então o meu desejo, encontrar nos dias da vida que vão nascer, o caminho para descobrir as palavras que te enalteçam, te exaltem e com elas preencher a carta que prometi escrever-te. É uma utopia, eu sei, tão bela e tão digna como essa que empurra uma parte da humanidade a combater por um mundo mais digno, mas tal como esta, na minha utopia, o melhor está na estrada a percorrer. Talvez, no fim do meu tempo, um dia nos possamos encontrar.

3 de Dezembro. Donald Trump chegou a Londres para uma reunião da NATO. Entre as palermices que disse em conferência de imprensa, saíram palavras de grande gravidade. Reconheceu que as tropas dos EUA que invadiram a Síria se mantêm a ocupar parte daquele país onde se encontram os campos petrolíferos do povo sírio e acrescentou: «temos o petróleo e podemos fazer com ele o que quisermos». Este roubo do petróleo sírio rende aos EUA 30 milhões de dólares por mês. A Rússia chamou a esta acção, «um acto de banditismo internacional». Cada notícia que chega da democracia dos EUA só nos faz entristecer a alma e desacreditar na humanidade.

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