António Mesquita
"A Leiteira" de Johannes Vermeer |
Num tempo em que qualquer fotografia está em vias de se poder transformar em "pintura", ao estilo que se quiser, à maneira do artista que se pretender imitar, e se um elemento aleatório representado pela cor, o ritmo ou o espaço podem trazer-lhe uma maior complexidade e novidade, como se distingue a arte autêntica desta 'arte robótica'?
Em vez de pintores inspirados pela luz e as gradações do dia sobre um objecto, pelo pregueado de um vestido ou o sentido fugidio da expressão num rosto, ou toda a escala e o ritmo das cores, a composição das formas que a aparenta, tão significativamente, à arte musical, o que temos hoje, graças à tecnologia digital e às inúmeras aplicações que nos oferecem, instantâneamente, na aparência pelo menos, todos os sortilégios dos artistas que todos admiram, senão o fim da pintura, dessa arte que acompanhou a humanidade desde as cavernas dos trogloditas, aos conventos e paços reais, ao Renascimento e à época moderna?
Esta não é como a crise da representação que provocou a invenção da fotografia que levou os mais 'inovadores' a procurar refúgio na pintura abstracta. No entanto, todos podemos observar a diferença que o estilo pessoal já estabelecia entre, por exemplo, a arte de um Boticelli e a de um Caravaggio. Embora se pudesse dizer que a partir da perfeição 'realista' de alguns mestres, o princípio da diferenciação se tornou uma cada vez maior "distorção", como se a continuação da arte da pintura requeresse, a cada novo início, uma mudança de lentes, desta vez, ao contrário do que faz o oftalmologista, devessemos escolher aquelas que corrigissem o mundo em vez de corrigirem os nossos olhos.
Agora, só estamos à espera que surja um quadro que se julgava perdido, ou que os historiadores da arte desconhecessem por completo, de um pintor cuja produção raríssima nos leva a pensar que quando pegou nos pincéis pela primeira vez já era um artista completo, sem os erros que todos os outros começam por praticar, digamos, Vermeer de Delft. E que se venha a saber que essa maravilha tinha sido pintada, há muito pouco tempo, por um 'robot' da última geração, e a partir duma paisagem holandesa ou duma moçoila sem brincos, nem caneca de leite, vestida ao gosto do século XVII.
Dir-se-á que a tecnologia pode ultrapassar a nossa memória e a nossa inteligência, mas não pode simular uma experiência subjectiva, a sensibilidade e as emoções humanas. São elas que, no fundo, se exprimem em todas as formas de arte. Mas temos em comum com o 'cérebro artificial' o facto de não controlarmos as fontes daquilo a que tradicionalmente chamamos de inspiração (é essa característica que distingue a verdadeira originalidade, a verdadeira criação). Porque a partir duma certa complexidade, ninguém nos garante que o super-artefacto exerça sobre todos os seus processos, aleatórios ou não, um controlo do tipo racional e consiga prever os seus próprios resultados.
A pintura está assim na iminência de ter de se refundar em novos valores e numa nova crença. A sua vulnerabilidade maior é ser, desde sempre, um avatar da imagem. E, talvez, nada tenha mudado tão radicalmente, na nossa época, como a nossa relação com as imagens e com uma nova preponderância destas sobre a linguagem.
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