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01/02/19

UM COLETE NA ENGRENAGEM

Mário Martins


https://www.google.com/search?q=COLETES+AMARELOS+IMAGENS

Estava a sociedade na sua vidinha, "avec ses églises et ses châteaux, ses lumières", os seus costumes e tradições, as suas instituições, o seu estado e o seu mercado, a sua liberdade e democracia, as suas elites, o seu governo e a sua oposição, as suas leis, os seus partidos e sindicatos profissionais, as suas relações de poder, a sua corrupção e delinquência, as suas manhas, o seu terrorismo, os seus divertimentos, as suas paixões e dramas, os seus telemóveis, a sua televisão, a sua internet e redes sociais, os seus ricos e muito ricos, os seus pobres, os seus miseráveis sem tecto, as suas classes do meio, estava, enfim, a sociedade a funcionar perfeitamente na sua rotina e no seu fatalismo, e eis que, 50 anos depois de sofrer o abalo do Maio de 68, e novamente de forma inesperada e vinda sabe-se lá de onde, irrompe a revolta dos coletes amarelos. 

Não que os dois movimentos se possam confundir pois isso seria confundir a poesia com a prosa. Maio de 68 foi, inicialmente, uma revolta de costumes estudantil que queria o fim da separação dos dormitórios para raparigas e rapazes, que depois alastrou política e socialmente, mas que nunca perdeu o seu carácter juvenil, poético e utópico, presente em palavras de ordem como: “Sejam realistas, exijam o impossível” ou “É proibido proibir”.

Já os coletes amarelos, mais maduros, lutam por uma distribuição mais justa e por uma diminuição do fosso entre os cidadãos e os decisores políticos, e é por isso que a grande maioria dos franceses simpatizou com o movimento. 

O que é similar nos dois movimentos é a sua emergência inorgânica e imprevista e o uso da violência. Adepto da não-violência, da cidadania responsável, da liberdade e da democracia (e, por oposição, adversário das ditaduras e dos populismos), não escondo, no entanto, que me agrada, em primeiro lugar, que as elites poderosas, afortunadas e arrogantes descubram, repentinamente, que têm barro nos pés, mas também que sejam abaladas as restantes camadas da sociedade que, assentes num relativo bem-estar, ignoravam essa nova classe dos chamados excluídos da globalização com o mesmo espírito conformista que as leva a tolerar a condição das pessoas sem abrigo.

A sociedade francesa terá novamente de lamber as feridas. O desejável regime de liberdade e democracia não pode servir de caução a gritantes injustiças e a excluídos.  

Politicamente, à conversa monocórdica das reformas estruturais, do crescimento do PIB, da diminuição do défice e da dívida públicas, vai ter que juntar – “hélàs” - a conversa dura da distribuição…


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