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01/04/15

DE 4

Cristina Guerreiro

 

O focinho no chão, uma humidade insistente a raspar no sobrado até deixar um rasto como o caracol, um cheiro intenso e atractivo que impedia a audição ao nome e eu gasta no chamamento, pus-me de quatro, uma marca onde o sol batia como uma língua a lamber as fatias de madeira aquecendo-a.

O cão tinha razão.

Cheirava ao salão onde Madame berrava o compasso batendo a vara a ritmo, por vezes nas pernas que não se endireitavam ou não se esticavam ou não se mantinham hirtas o tempo suficiente até tremermos do esforço, do medo e da vergonha.

Cheirava a madeira quente e a um suor muito especial, e a pó de talco e a pez e a sangue também. Ou se calhar não. Talvez fosse apenas invenção da minha cabeça e dos outros para a condenarmos por nos fazer sofrer, mas de vez em quando havia mesmo sangue de verdade nos pés e nas unhas e também nos joelhos e ninguém se incomodava com isso, limpava-se e seguia-se como se fosse normal.

Cheirava a água de colónia verde. De Madame. Que por vezes fazía dores de cabeça. Não sei que perfume era aquele mas sempre o imaginei verde, de um verde perigoso como se fosse veneno, que se lhe tocasse com um dedo morreria, embora nunca tivesse visto o frasco, só o lenço muito branco com rendinhas que ela escondia na manga do maillot e deixava um altinho como se ali tivesse um inchaço. Provavelmente era ali também o lugar do seu coração, o único alto que tinha no corpo, pois de todo o resto era estreita e lisa como uma tábua do chão onde fazíamos os pliés e relevés sem sitio que lhe pudesse caber qualquer outra coisa.

Até o pianista tinha medo dela. Não me lembro do nome do senhor, mas recordo-me que estava sempre pálido e suado como se estivesse na barra connosco. Quando ela se aproximava dele e pousava a mão muito branca e magra sobre o negro do piano, ele nunca levantava os olhos das pautas e mantinha-se sempre curvado apenas fazendo um movimento rápido com o pescoço para a frente como uma bicada sobre as teclas dando inicio aos acordes.

O cão tinha toda a razão.

Este cheiro é absolutamente tóxico, que saudades.

 

 

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