Alcino Silva
Estância Puerto Consuelo, Puerto Natales, Província Última Esperança, 31 de Janeiro de 2014
à redação da Periscópio
meus caros periscopianos, envio-vos esta carta de longe para vos informar que, desta vez, não me é possível enviar o que chamamos «o meu artigo para a Periscópio». Como poderão ver pelo selo que timbra a carta, retirei-me, afastei-me, vencido, para longe. Esta Estância numa ramificação do fiorde que se dirige para norte, faz-nos ingressar nesse mundo do silêncio, rodeado de natureza, entre o verde dos pastos e a brancura imaculada da neve que teima em não descer das encostas agrestes da montanha. Quando os meus olhos se erguem ao amanhecer de cada dia, encontro a ponta sul da cordilheira nesse espaço onde os Andes, talvez cansados como eu, da miséria humana, desistem das suas alturas e deixam-se mergulhar vencidos no mar antárctico. Por aqui não há coelhos que a terra é dura e gelada e não deixa lugar para se esconderem quando chegar a hora de terem de dar corda aos sapatos. Também não há portas porque ninguém rouba, ou é ao contrário, ninguém rouba porque não há portas, creio que é mais precisamente assim. É um lugar sossegado e a Estância cujos fundadores por aqui chegaram em 1892 e iniciaram a colonização da região, permite essa quietude que necessitamos para esquecer esse bando de miseráveis que ocuparam o poder e saciam a sua fome obscena com a complacência de tantos de nós. Chegam turistas é certo, procurando esta vivência com sabor a liberdade, mas não faltam caminhos por onde estenda os passos e não tenha de escutar as notícias desse mundo onde se vai esfrangalhando a sede de justiça dos Homens. Escrevo a 31 de Janeiro, também eles derrotados, esses homens que chegaram 20 anos antes da história, antes vencidos e não derrotados, pois a ideia de Justiça e Liberdade não soçobra numa única batalha. Por aqui ouve-se o vento. Por vezes canta, como a voz dos monges que acordavam as serranias nesses longínquos tempos das três ordens. Cansei-me, dessa democracia que legaliza a tortura, fomenta o roubo, olha indiferente para o saque dos Estados, e nada faz, ou deixa-se derrotar mais do que eu, por essa monstruosa indecência que é a opulência gananciosa de um grupo de bandoleiros. Senti essa fadiga de ouvir aqueles que olham para tudo isto como se a democracia fosse um jogo em que hoje se ganha e amanhã se perde e não existissem vidas e seres humanos jogados na roleta da História por criaturas sem moral, sem ética, sem dignidade. Tornou-se-me insuportável escutar criaturas abjectas, excrementos sociais quer tenham o nome de Camilos Lourenços ou de Seixas Vale. A sanidade mental que ainda me resta ameaçava ruir face a estes vómitos humanos que se apoderaram da nação para a descaracterizar, e se não lhes deitarem a mão a tempo, a fazer implodir. Uma quadrilha de adolescentes acabados de desmamar lançou um processo auschwitzano de imolar os velhos transformando o país num enorme tanatório onde lentamente os vão preparando, diminuindo a dose de alimento e reduzindo o tratamento à doença, para que derretam de seguida numa cremação de fogo lento, poupando assim energia, como fazia a inquisição aos pecadores mais relapsos. E fazem-no com o nosso silêncio e complacência, quando não com a nossa cumplicidade, como escreveu Bagão Félix, “A ideologia punitiva sobre os mais velhos prossegue entre um muro de indiferença, um biombo de manipulação, uma ausência de reflexão colectiva e uma tecnocracia gélida”. Miguel Torga disse-nos que «a honra era lutar sem esperança de vencer», mas ao caminhar por estas veredas mudas, sinto que me faltaram as forças. Já na saída ainda me chegaram as palavras combativas do Baptista Bastos, “Não podemos, nem devemos admitir que esta gentalha destrua o que ainda deixou restar da decência, da honra e da dignidade da nação e da pátria. Acordai, cidadãos!”, mas ninguém o ouve e quase todos parecem dormir num sono profundo, enquanto a nação e a pátria vão ruindo como os extremos destes glaciares com o aquecimento do estio.Henri Miller no seu O Colosso de Maroussi dizia-nos que na quietude de Epidauro sentiu que, ao ouvir o coração do mundo bater, a grande cura é desistir, abdicar, render-se, para unir o bater do nosso coração com o do mundo. Talvez tenha razão, apesar do quanto me assusta pensar que desisti, me acobardei, fugi, mas acreditei ser o mais certo para defesa da decência que nos fala o Baptista Bastos. Há dias, num desses longos passeios que realizo sem horas, seguindo o trajecto da água entre o azul e o verde até que a montanha sustem o fiorde, ocorreu-me a frase de Mandela de que “Um santo é um pecador que luta até ao fim”, talvez não sendo santo e só pecando, não fui capaz de chegar ao fim. As tardes, chegam cedo por aqui e a noite não vem devagarinho como no Atlântico, despe-se depressa e deita-se com a luz apagada. Num desses entardeceres quando o vermelho do céu incendiou por minutos a terra, recordei a crítica da Revista Activa ao livro A Bibliotecária de Auschwitz de António Iturbe editado pela Planeta e onde se podia ler que “não se morre só de falta de comida, também se morre de falta de esperança…». Creio que terá sido isso que me venceu, mas desejo que não sigam o meu exemplo, mas antes o do Baptista Bastos, “Acordai, cidadãos!”
Recebam um abraço longínquo e saudoso.
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