Alcino Silva
Não nasci em Maio, o
mês das rosas, mas renasci em Maio. Talvez por isso, fiz da rosa a minha flor,
um símbolo, um afecto.
Foi em Maio, ou mais
precisamente às doze e trinta do dia vinte e três de Maio que abriram a porta
da minha vida e colocaram uma rosa nos sonhos que habitavam esquecidos no meu
olhar.
E desde então, todos
os anos, quando chegava aquele dia de Maio, abria-se a porta do meu pensamento
e acordava com um beijo e uma rosa no espelho dos meus olhos e sentia umas mãos
compondo a flor nesse estranho silêncio cheio de ritos e ternura.
Nesse tempo o sol
nascia exactamente no meu quarto. Abria a janela. Em frente era o largo, a
velha árvore do largo onde habitava o tempo. Quando chegava o mês de Maio,
abria a janela e embriagava-me com o cheiro, a primavera, a jardins e à terra
molhada pela chuva. E respirava o ar de todas as viagens, da minha janela,
capital do mundo, debruçado sobre o largo onde começavam todos os caminhos.
E tudo estava certo,
nesse tempo, e nada tinha o sabor do irremediável. A ausência, o vazio do sonho
que foi, só depois, por muito tempo haveria de ficar ainda desenhada na silhueta
dos olhares e no recanto dos jardins, à sombra das magnólias, andando pela casa
nos pequenos ruídos da imaginação e pouco a pouco sentando-se nas muitas perdas
que viviam na almofada da minha memória.
A partir desse dia de
Maio passei a dormir poisado sobre a eternidade, como se tudo estivesse certo
para sempre, dormia com muitos olhos, muitos gestos vigilantes sobre o meu
sono. Por vezes, tinha pesadelos, acordava, inquieto, a meio da noite, qualquer
coisa parecia querer despedaçar-se e então chamava pelo seu nome, e logo essa
voz, tão calma, tão profunda, entrava dentro de mim, mandava embora os
fantasmas, e era de novo o meu quarto, a doce quentura da minha casa no cimo da
ternura.
Aprendi a sentir a
Primavera desembrulhar-se em flores, em cores, em brilho de sol ameno
alindando-se para o Verão, em sentir as árvores nessa pulsação de vida que
brota em fruto e estendendo as suas copas por espaços maiores que frondosamente
haveriam de sobrevoar a terra e sentir também os últimos frios esfumarem-se em
nuvens e os degelos derreterem-se em caudais de rios e lagos.
Deixou de haver medo
nesse tempo. Ninguém roubaria a tranquilidade do meu sono, ninguém viria a meio
da noite para me levar, porque bastava eu chamar, e logo uma voz, serena
mandava embora os fantasmas. Era a paz nesse tempo, em que todos os anos,
quando chegava o mês de Maio, mais exactamente, o dia vinte e três de Maio, às
doze horas e trinta, abria-se a porta do quarto onde os meus sonhos
descansavam, e colocavam um ramo de rosas sobre a minha vida, nesse tempo, em
que tudo parecia certo, exacto e imutável e as estações cumpriam o seu rito.
Em Maio de um ano sem
nome, estava preso nessas cordas que a vida tece. Era terrível acordar num
espaço em que o horizonte terminava no prolongamento do braço. Por vezes, a
meio da noite, um grito abalava a estrutura do meu pensamento, da minha vida, e
acordava, suado e exausto com o medo a assaltar as muralhas do meu silêncio.
Era inútil chamar. Dormia acordado sobre o tempo. Tinha aprendido fisicamente a
solidão. Era dolorosa essa manhã sem manhã, essa realidade branca e gelada, era
terrível acordar nessa estreita passagem, tão hostil e dolorosa como o país dos
pesadelos.
Foi então, nesse ano
sem nome, que pela primeira vez, no mês de Maio, mais exactamente no dia vinte
e três de Maio, pelas doze horas e trinta, alguém abriu a porta do mundo parado
na memória do meu tempo e pousou uma rosa amarela sobre os meus sonhos.
Mas nem sempre as
rosas acompanham a eternidade. Talvez seja preciso renunciar à felicidade para
conquistar a felicidade.
Há
cerca de trinta anos encontrei duas folhas onde apareciam impressas, em
fotocópia, três páginas de um livro. São as páginas, 31, 32 e 33. Desconheço o
autor e o nome da obra, apenas sei que é o início de um capítulo com o título
Rosas Vermelhas. Guardei-as porque gostei de as ler. Talvez que este
desconhecimento me tenha alentado a esta cópia e a este plágio para expressar
uma outra ideia. Que o autor me perdoe esta falta. Foi com boa intenção, se é
que as boas intenções podem desculpar alguma falta.
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