Mário Martins
O grande Torii do Santuário de Itsukushima, património mundial (Wikipédia)
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“O xintoísmo é uma religião
étnica, sem fundador, que nasceu e se desenvolveu no seio do povo japonês. Ao
contrário das “religiões reveladas” que dão grande importância aos actos e
palavras dos fundadores, o xintoísmo - religião natural - não assenta em textos
canónicos (…).
O xintoísmo é um politeísmo. Os
kami (deuses) mencionados
nos clássicos, tal como os que hoje são venerados nos santuários, são pois
inúmeros (…). Ao contrário dos monoteísmos, o xintoísmo não tem, por
conseguinte, divindades todo-poderosas: os kami não são nem omniscientes nem
absolutos.”
Masanori Toki
Neste périplo
já longo pelo oriente religioso, eis-nos não só chegados aos seus confins
geográficos como ao reverso das religiões monoteístas: bem vindos ao politeísmo
japonês.
O termo “xintó” - literalmente, “via/conduta dos deuses” -
remete para um conjunto diversificado de crenças, de cultos, de concepções do
mundo e do universo que prevalecem no arquipélago japonês de uma maneira
flexível, sem esforço de sistematização, desde a antiguidade. Na sua acepção
mais antiga, exprime o mundo religioso do Japão pré-búdico (…).
(…) Segundo uma repartição funcional das duas principais
correntes religiosas japonesas, o budismo estaria associado ao mundo da morte e
do além, e o xintoísmo, como numerosos paganismos, às forças da vida, da
frutificação e da fecundidade. Ao xintó estariam igualmente ligados a
sedentariedade, a produção e o comércio; ao budismo, a vida errática, o
efémero, o desapego. O lugar do xintoísmo na história religiosa do Japão apenas
se pode entender na sua relação íntima e na sua interligação constante com a
religião búdica.
Certas práticas e crenças indígenas mencionadas nas crónicas
chinesas e nos primeiros escritos japoneses dão-nos informação acerca de
algumas noções fundamentais do universo xintó antes da introdução do budismo, em
meados do século VI: importância do culto dos mortos, das práticas xamanistas (de xamã,
feiticeiro que medeia entre a realidade profana e a dimensão sobrenatural) e dos ritos agrários. Nessa época, o xintoísmo
parece ter representado as expressões populares de um culto prestado às
inúmeras divindades autóctones denominadas “kami” (…) (expressão que) tanto significaria “elevado”, “espelho”, “corpo oculto” como ainda “pessoa de alta estirpe” (…).
As particularidades destes “espíritos” ou “forças vitais” são
a sua omnipresença e a sua grande diversidade. Povoam o conjunto do arquipélago
e estão associados a lugares específicos: mares, águas, montanhas, florestas,
rochedos, espaços limítrofes - fronteiras de aldeias, desfiladeiros e
encruzilhadas (…) Mas os kami não designam apenas lugares naturais, reinam
sobre territórios celestes donde descem ocasionalmente. Aparecem igualmente
como as divindades ancestrais de uma certa família ou de determinado clã. Os
kami podem também revestir a aparência de animais - tigres, lobos serpentes,
raposas, corvos - ou de fenómenos naturais temidos, como o raio ou os tufões,
sem que se possa saber exactamente se estes últimos são a sua “forma
divinizada” ou os seus mensageiros. Acontece, finalmente, serem considerados
kami certos seres humanos. A tradição dos “kami vivos”, homens eminentes pelo
seu saber ou pelo seu poder militar, elevados, após a sua morte, ao nível de
divindades, ou então fundadores de movimentos religiosos, venerados em vida
como deuses, é a marca de uma mediação necessária entre o mundo dos homens e o
dos kami.
As divindades xintoístas são efectivamente forças invisíveis
- não há representações antropomórficas antes da chegada do budismo e da sua
rica iconografia - que se furtam ao olhar e que possuem ao mesmo tempo um
“espírito de violência” e um “espírito de doçura” (…).
(…) A consolidação recíproca das duas religiões permitiu colocar kami e budas ao serviço do
Estado. A pouco e pouco, o caminho seguido foi na direcção de um sincretismo
xinto-búdico elaborado por monges budistas influentes, com a intenção de
associar os dois tipos de divindades, clarificando ao mesmo tempo as relações
que as uniam. Este pensamento assimilador (…) pode resumir-se do seguinte modo:
divindades búdicas podiam assumir a aparência de divindades xintoístas (…).
“Amaterasu O-mikami”, a divindade suprema do xintoísmo, foi naturalmente
associada a “Dainichi-nyorai”, símbolo do disco solar e divindade essencial do
budismo esotérico (conhecimento, em círculo restrito, do sobrenatural) xingon (…).
(…) O governo dos “Meiji” (1868) renunciou à edificação de
uma “religião nacional”; propôs, mais subtilmente, uma nova separação, desta
vez no próprio seio do xintoísmo, que foi reorganizado em torno de duas
instituições: o “xintó das seitas” - a sua vertente religiosa - e o “xintó dos
santuários” ou “xintó de Estado” - a sua vertente laica.
O primeiro tipo de xintoísmo permitiu pôr em contacto cultos
populares e culto imperial (…). O segundo tipo de xintoísmo transformou-se numa
religião do dever cívico em que a população japonesa era convidada - em
santuários nacionais e através de ritos executados por liturgistas nomeados
pelo governo - a participar no culto do imperador. O xintó deixava de ser uma
religião. Servia para justificar, tal como o ensino escolar e os seus manuais
de educação moral, a descendência divina da casa imperial e a “essência
inalterável” da nação japonesa.
(…) O xintoísmo, sob a sua forma popular, perdurou ao longo
de toda a história do Japão (…). No coração do processo de “secularização” da
sociedade japonesa, a industrialização e a urbanização rápida foram, na
verdade, os mais rudes adversários do xintoísmo (…). A religião da aldeia
tornou-se uma “religião na cidade” (…).
(…) Mas não deixa de ser verdade que o xintoísmo continua a
ser entendido pelos Japoneses como a religião “natural”, a da tradição, sem se
notar qualquer consciência de pertencer a uma qualquer “Igreja”: as noções de
pureza, de harmonia triangular entre os deuses, os homens e a natureza, a
possibilidade de uma comunicação directa com vista a uma protecção e a
benefícios na vida sobre a terra, continuam a constituir os seus elementos
essenciais (…). As estatísticas religiosas mencionam todos os anos que oitenta
milhões de japoneses (numa população de cerca de 124 milhões) vão aos grandes santuários do país na altura das festas do Ano Novo
para adquirirem feitiços e amuletos protectores (…).
Todas as citações (em itálico)
são da obra “As grandes religiões do mundo”, Jean-Pierre Berthon, Direcção de
Jean Delumeau, 1993, Editorial Presença, 2002.