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01/01/12

O NEGRO E MR. HARDING


Proposta de Manuel Joaquim
RECORDANDO O GRANDE ESCRITOR
JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS

Warren Harding 


Warren Gamaliel Harding presidiu (mas estritamente falando não governou) de 1920 a 1923. Suave e bem-falante, temente a Deus, conservador, inculto, isolacionista como era próprio do tempo, subiu todos os degraus da carreira política, desde o jornalzinho de Marion (Ohio) até à Casa Branca. Liberta do capital europeu, a América entrava resolutamente no caminho da expansão e da prosperidade indefinida, ao som da fanfarra de John Felipe de Souza (com Z), em contracanto da literatura expatriada e pessimista de Dos Passos, Hemingway e Scott Fitzgerald. America beautiful, America for ever!  Até quando? 1921 foi um ano de severa crise. Outras já tinha havido. Mister Harding,  impotente, viu afundar-se em escândalos a camarilha que o fizera eleger pelo Grand Old Party de Lincoln, o Republicano. Peita, concussão, venda de empregos e contratos….Alguns dos seus mais próximos colaboradores foram malhar com os ossos na cadeia. Havia justiça! – que se soubesse.

O Presidente, alarmado, lançou-se a correr o país, acompanhado da esposa e de nutrida comitiva. No Alasca, um misterioso telegrama em cifra, cujo conteúdo nunca foi revelado, acabrunhou-o subitamente. Exausto e doente, foi morrer em S. Francisco a 2 de Agosto de 1923. Falou-se de conspiração e de envenenamento; descobriram-lhe o adultério e uma filha ilegítima, imagine-se o horror! Alguma coisa parecia ter apodrecido no reino do Puritanismo. Os homens preferiram calar-se. A sua biografia só viria à luz uns quarenta anos depois.

E os Negros, esses esquecidos: que pediam, suplicavam esperavam eles? Em nome da Constituição: «Todos os homens nascem livres e iguais.» Uns mais, outros menos… Não consta que Mr. Harding haja feito nada. Que podia ele fazer? O Sul (democrático) lá estava, ameaçador. E depois, os Negros, se lhes damos a mão… Para os emancipar, a livre e generosa América lançara-se na Guerra Civil: cinco anos de luta (1860-65), 250 000 mortos, devastações incalculáveis, o Sul em cinzas reduzido a colónia do Norte. Ao «Algodão-Rei» ia seguir-se o reinado de rapina dos carpet-baggers, agentes do capitalismo bancário-industrial do Norte. (Assim chamados por via das maletas de tapeçaria que carregavam consigo.) Um grupo de negros eminentes avistou-se com o Presidente Lincoln na Casa Branca: «Que ia ser o futuro deles?» o Emancipador foi de uma franqueza exemplar: «Isto é uma nação de homens brancos. Aqui nunca vocês conhecerão a igualdade. Voltem para África, ou procurem na América Latina um país onde se possam estabelecer.» Para onde haviam eles de ir? Esta era a sua terra. Aqui tinham nascido, filhos de escravos trazidos pela vontade e força dos seus senhores. Ficaram. O movimento «Back to Africa», que tivera  certa popularidade, iria morrendo aos poucos. A Libéria, criada por compra, fora uma conquista de negros americanos sobre os africanos: para benefício da Firestone Rubber Company sobretudo. ( Paul Robeson faria, nos anos trinta, um filme medíocre a condenar o Retorno à África.)
Após a Guerra Civil, durante a Reconstrução (1866-77), muitos negros do Sul tinham sido eleitos para o Congresso da União. Mas, de 1901 a 1928, só um negro ali figurou: minoria de um, calado. O Ku Klux Klan (1866), respaldado na lei severa e nos costumes, fizera do «Lynch» uma arma de intimidação. Manter o negro no seu lugar era a palavra de ordem. Fosse como fosse. O direito do voto e a cidadania, garantidos pelos Amendments constitucionais de 65 e 68, tornaram-se letra-morta. Os Tribunais, incluindo o Supremo, lavaram daí as suas mãos. A época de Harding foi pois de eclipse para o afro-americano.

Calcula-se que, só na primeira década deste século, tenha havido uns 900 linchamentos, quase todos no Sul. Em 1935-36 ainda ouvi falar de meia dúzia; e assisti às ruidosas campanhas a favor dos «Scottsboro Boys», de Angelo Herndon, e de outros mártires e perseguidos. O Negro subira ao nível da consciência nacional. Foi por então que publiquei (n’O Diabo) aqueles versinhos: « No cabaré dança um negro / com o sorriso todo branco / entalado nos dentes como um  fruto imaginário …»

Embora nunca cessassem de manifestar o seu descontentamento e resistir – à parte algumas insurreições, famosas mas circunscritas: G. Prosser, Nat Turner, Douglass e outros (John Brown era branco e veio mais tarde) – os escravos foram quase sempre de uma cordura impressionante: nada dos quilombos e palmares do Brasil! Refugiavam-se atrás da nostalgia, dos espirituais, da religião cristã, da reserva e dignidade impenetráveis (quanto menos atritos com o branco, melhor!) e da caricatura que deles deram depois o vaudeville e o cinema: superstição, medo, infantilismo, desleixo…indolência! Os seus pregadores, cantores e desportistas, porém, foram sempre extraordinários. (Era de Mathilda, do Tom, de Mr. James e de outros negros meus conhecidos que eu desejaria falar aqui!)

Já antes da Abolição os negros, livres ou escravos, fugiam para o Norte; havia o famoso railroading clandestino. Dos 800 000 que eram em 1790 – 1/5 da população, 90% deles no Sul, onde predominava a cultura do algodão – tinham subido para dez milhões em 1920, 85% deles ainda no Sul, ainda adstritos à gleba. Hoje são mais de 21 milhões, 11% da população, menos de 60% deles no Sul. A procriação dos escravos era favorecida pelos seus senhores , porque rendosa. Primeiro o algodão e a miséria, depois a liberdade, multiplicaram-nos, sempre com a colaboração do branco no lençol-de-cima. Mais de 70% dos negros norte-americanos são de facto mestiços. Muitos têm sangue índio também.

Com a primeira Guerra Mundial, a religião e a indústria fomentaram a migração de uns dois milhões de negros para o Norte. A concorrência desta mão-de-obra ilimitada – o negro era usado sobretudo como «amarelo» ou rompe-greves a menor salário – suscitou a hostilidade dos operários industriais, na maioria europeus de origem. Reciprocamente, para o negro, eles eram «estrangeiros»…Uma parte do grande patronato e as Labor Unions preferiam o imigrante – sóbrio, laborioso, ambicioso e obediente ou conformista – ao negro handicapado pela condição histórica, a ignorância e a rebeldia latente. As restrições à emigração, com o desemprego inerente à crise, e a falta de habitação, agravaram o conflito. O gueto negro entretanto alastrou, lepra dos grandes centros, com todas as misérias inerentes: crime, drogas, jogatina, vagabundagem, prostituição, doenças venéreas, filiação ilegítima, alta mortalidade…Como ainda hoje! O espectro cresceu, e com ele o problema de consciência. Segundo o romancista negro James Baldwin, a nação americana sofre  de um sentimento de culpa que a rói por dentro, como a lagarta ao fruto reluzente. Paralelamente, o Negro padece de um trágico sentimento de inferioridade (e de fealdade) que se traduz em que a maioria dos crimes de negros são praticados contra os seus próprios irmãos de raça. E a Negra, vítima do domínio sexual do branco, torna-se por sua vez dobrada vítima do Negro, da sua exploração, ciúme e despeito…

Com a segunda Guerra Mundial tudo isso piorou, e vieram as batalhas de rua. Dezenas de negros foram chacinados no progrome de Detroit, a capital do Automóvel. Os negros ameaçaram marchar sobre Washington, como os desempregados do tempo de Hoover, a reclamar reparação. Roosevelt lançou a sua Ordem Executiva contra a discriminação nas indústrias de guerra: um gesto apenas, e foi o começo de uma era nova. O Comité Sindical de Organização Industrial (CIO), mais progressista que a A.F. of L.  (Federação Operária Americana), abriu-lhes as portas. Ao tempo, o Partido Comunista advogava um Estado à parte para os Negros, dentro da União, ideia impopular, recentemente avivada por certas organizações. A bola de neve (negra) cresceu, rolou. Os Negros já não pediam, como no tempo de Harding: manifestavam-se, reclamavam, batiam-se. Eisenhower em 1955, John F. Kennedy em 1961, reforçaram a igualdade industrial do Negro. O Supremo Tribunal de Justiça decretou enfim a integração escolar. Escolas superiores, como a Universidade da Cidade de Nova Iorque, dão-lhes entrada gratuita. (Tem hoje cerca de 200 000 estudantes.) Há a igualdade do salário nas profissões organizadas. O gueto transbordou, invade os próprios subúrbios, dantes refúgio das classes desafogadas., Há ainda resistências, evasivas, violências até, por parte de alguns sectores, mas já nada pode deter a onda. No próprio Sul, baluarte do Apartheid, generaliza-se a integração escolar, negros são eleitos. Os porto-riquenhos das cidades, dantes um grupo rival, unem-se-lhes nas reivindicações. (Estes recém-chegados são ainda, em alguns segmentos do Trabalho, mais bem pagos do que os negros nativos.) A polícia, duma severidade proverbial mesmo na repressão dos estudantes brancos, modera-se, procura evitar ensejos de violência. Há forças múltiplas trabalhando para a solução pacífica e progressiva do problema. O negro vai perdendo o seu sentimento de inferioridade. Vemos hoje nessas ruas as loiras nórdicas passeando os frutos da sua livre união com homens de cor… A solução parece estar, com efeito, na convivência, no amor, na intimidade – como o julgou ver no Brasil o Prof. Wagley, sociólogo. O voto negro já pesa nas grandes e até nas pequenas urbes. Os partidários da violência vão perdendo terreno…embora haja quem espere ver sair a Revolução do seio das penitenciárias.

Decerto, é imenso ainda o caminho a percorrer: o desemprego continua a ser, entre os negros, o dobro do que se regista entre os brancos; muito maior a sua mortalidade infantil, e menor a sua perspectiva de sobrevivência individual. A carência de instrução e de costumes de trabalho circunscreve-os ainda às tarefas inferiores. Mas haverá solução total, repentina, para quaisquer problemas? O progresso tem sido tal, nestes cinquenta anos, que bem se pode falar de «revolução». E que nação, etnicamente individualizada e consciente, aceitaria sem temos essa presença perturbadora ? Porque se trata não só de uma questão económica e social, ou mesmo racial, mas de uma confrontação de identidades, de culturas, de ways of life , que põe em perigo o equilíbrio moral da nação. Só quem o não tem em sua própria casa poderá falar de fáceis soluções. A homogeneidade de uma nação de dimensões continentais e multirraciais nunca se fez em dois tempos. Quando deixaremos nós de pensar por slogans, abstracções, ideias feitas, narizes de cera, para encarar a realidade e pensar objectivamente, pela nossa própria cabeça?

Pobre, esquecido Mr. Harding! E que idade, que sonhos, que ilusões tínhamos nós há cinquenta anos? Quantos desenganos desde então não sofremos!


[ Escrito a pedido do Diário de Lisboa para a comemoração do seu 50º aniversário. Este jornal publicara no seu primeiro número, em 1921, um telegrama de Washington dando a notícia do encontro de líderes negros com o Presidente Harding. Este foi o meu comentário ]
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Este texto  consta no livro “O espelho poliédrico” , das Obras Completas de José Rodrigues Miguéis, 2ª edição , Editorial Estampa. 1ª edição: Estúdios Cor, 1973.
José Rodrigues Miguéis nasceu em Lisboa em 1901 e viveu muitos anos nos Estados Unidos até à sua morte em 27 de Outubro de 1980.


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