Proposta de Manuel Joaquim
RECORDANDO
O GRANDE ESCRITOR
JOSÉ
RODRIGUES MIGUÉIS
Warren Gamaliel
Harding presidiu (mas estritamente falando não governou) de 1920 a 1923. Suave
e bem-falante, temente a Deus, conservador, inculto, isolacionista como era
próprio do tempo, subiu todos os degraus da carreira política, desde o
jornalzinho de Marion (Ohio) até à Casa Branca. Liberta do capital europeu, a
América entrava resolutamente no caminho da expansão e da prosperidade
indefinida, ao som da fanfarra de John Felipe de Souza (com Z), em contracanto
da literatura expatriada e pessimista de Dos Passos, Hemingway e Scott
Fitzgerald. America beautiful, America for ever! Até quando? 1921 foi um ano de severa crise.
Outras já tinha havido. Mister Harding,
impotente, viu afundar-se em escândalos a camarilha que o fizera eleger
pelo Grand Old Party de Lincoln, o Republicano. Peita, concussão, venda de
empregos e contratos….Alguns dos seus mais próximos colaboradores foram malhar
com os ossos na cadeia. Havia justiça! – que se soubesse.
O Presidente,
alarmado, lançou-se a correr o país, acompanhado da esposa e de nutrida
comitiva. No Alasca, um misterioso telegrama em cifra, cujo conteúdo nunca foi
revelado, acabrunhou-o subitamente. Exausto e doente, foi morrer em S.
Francisco a 2 de Agosto de 1923. Falou-se de conspiração e de envenenamento;
descobriram-lhe o adultério e uma filha ilegítima, imagine-se o horror! Alguma
coisa parecia ter apodrecido no reino do Puritanismo. Os homens preferiram
calar-se. A sua biografia só viria à luz uns quarenta anos depois.
E os Negros, esses
esquecidos: que pediam, suplicavam esperavam eles? Em nome da Constituição:
«Todos os homens nascem livres e iguais.» Uns mais, outros menos… Não consta
que Mr. Harding haja feito nada. Que podia ele fazer? O Sul (democrático) lá
estava, ameaçador. E depois, os Negros, se lhes damos a mão… Para os emancipar,
a livre e generosa América lançara-se na Guerra Civil: cinco anos de luta
(1860-65), 250 000 mortos, devastações incalculáveis, o Sul em cinzas reduzido
a colónia do Norte. Ao «Algodão-Rei» ia seguir-se o reinado de rapina dos carpet-baggers,
agentes do capitalismo bancário-industrial do Norte. (Assim chamados por via
das maletas de tapeçaria que carregavam consigo.) Um grupo de negros eminentes
avistou-se com o Presidente Lincoln na Casa Branca: «Que ia ser o futuro
deles?» o Emancipador foi de uma franqueza exemplar: «Isto é uma nação de
homens brancos. Aqui nunca vocês conhecerão a igualdade. Voltem para África, ou
procurem na América Latina um país onde se possam estabelecer.» Para onde
haviam eles de ir? Esta era a sua terra. Aqui tinham nascido, filhos de
escravos trazidos pela vontade e força dos seus senhores. Ficaram. O movimento
«Back to Africa», que tivera certa
popularidade, iria morrendo aos poucos. A Libéria, criada por compra, fora uma
conquista de negros americanos sobre os africanos: para benefício da Firestone
Rubber Company sobretudo. ( Paul Robeson faria, nos anos trinta, um filme
medíocre a condenar o Retorno à África.)
Após a Guerra Civil,
durante a Reconstrução (1866-77), muitos negros do Sul tinham sido eleitos para
o Congresso da União. Mas, de 1901 a 1928, só um negro ali figurou: minoria de
um, calado. O Ku Klux Klan (1866), respaldado na lei severa e nos costumes,
fizera do «Lynch» uma arma de intimidação. Manter o negro no seu lugar era a
palavra de ordem. Fosse como fosse. O direito do voto e a cidadania, garantidos
pelos Amendments constitucionais de 65 e 68, tornaram-se letra-morta. Os
Tribunais, incluindo o Supremo, lavaram daí as suas mãos. A época de Harding
foi pois de eclipse para o afro-americano.
Calcula-se que, só na
primeira década deste século, tenha havido uns 900 linchamentos, quase todos no
Sul. Em 1935-36 ainda ouvi falar de meia dúzia; e assisti às ruidosas campanhas
a favor dos «Scottsboro Boys», de Angelo Herndon, e de outros mártires e
perseguidos. O Negro subira ao nível da consciência nacional. Foi por então que
publiquei (n’O Diabo) aqueles versinhos: « No cabaré dança um negro / com o sorriso
todo branco / entalado nos dentes como um
fruto imaginário …»
Embora nunca
cessassem de manifestar o seu descontentamento e resistir – à parte algumas
insurreições, famosas mas circunscritas: G. Prosser, Nat Turner, Douglass e
outros (John Brown era branco e veio mais tarde) – os escravos foram quase
sempre de uma cordura impressionante: nada dos quilombos e palmares do Brasil!
Refugiavam-se atrás da nostalgia, dos espirituais, da religião cristã, da
reserva e dignidade impenetráveis (quanto menos atritos com o branco, melhor!)
e da caricatura que deles deram depois o vaudeville e o cinema: superstição,
medo, infantilismo, desleixo…indolência! Os seus pregadores, cantores e
desportistas, porém, foram sempre extraordinários. (Era de Mathilda, do Tom, de
Mr. James e de outros negros meus conhecidos que eu desejaria falar aqui!)
Já antes da Abolição
os negros, livres ou escravos, fugiam para o Norte; havia o famoso railroading clandestino.
Dos 800 000 que eram em 1790 – 1/5 da população, 90% deles no Sul, onde
predominava a cultura do algodão – tinham subido para dez milhões em 1920, 85%
deles ainda no Sul, ainda adstritos à gleba. Hoje são mais de 21 milhões, 11%
da população, menos de 60% deles no Sul. A procriação dos escravos era
favorecida pelos seus senhores , porque rendosa. Primeiro o algodão e a
miséria, depois a liberdade, multiplicaram-nos, sempre com a colaboração do
branco no lençol-de-cima. Mais de 70% dos negros norte-americanos são de facto
mestiços. Muitos têm sangue índio também.
Com a primeira Guerra
Mundial, a religião e a indústria fomentaram a migração de uns dois milhões de
negros para o Norte. A concorrência desta mão-de-obra ilimitada – o negro era
usado sobretudo como «amarelo» ou rompe-greves a menor salário – suscitou a
hostilidade dos operários industriais, na maioria europeus de origem.
Reciprocamente, para o negro, eles eram «estrangeiros»…Uma parte do grande
patronato e as Labor Unions preferiam o imigrante – sóbrio, laborioso,
ambicioso e obediente ou conformista – ao negro handicapado pela condição
histórica, a ignorância e a rebeldia latente. As restrições à emigração, com o
desemprego inerente à crise, e a falta de habitação, agravaram o conflito. O gueto
negro entretanto alastrou, lepra dos grandes centros, com todas as misérias
inerentes: crime, drogas, jogatina, vagabundagem, prostituição, doenças
venéreas, filiação ilegítima, alta mortalidade…Como ainda hoje! O espectro
cresceu, e com ele o problema de consciência. Segundo o romancista negro James
Baldwin, a nação americana sofre de um
sentimento de culpa que a rói por dentro, como a lagarta ao fruto reluzente.
Paralelamente, o Negro padece de um trágico sentimento de inferioridade (e de
fealdade) que se traduz em que a maioria dos crimes de negros são praticados
contra os seus próprios irmãos de raça. E a Negra, vítima do domínio sexual do
branco, torna-se por sua vez dobrada vítima do Negro, da sua exploração, ciúme
e despeito…
Com a segunda Guerra
Mundial tudo isso piorou, e vieram as batalhas de rua. Dezenas de negros foram
chacinados no progrome de Detroit, a capital do Automóvel. Os negros ameaçaram
marchar sobre Washington, como os desempregados do tempo de Hoover, a reclamar
reparação. Roosevelt lançou a sua Ordem Executiva contra a discriminação nas
indústrias de guerra: um gesto apenas, e foi o começo de uma era nova. O Comité
Sindical de Organização Industrial (CIO), mais progressista que a A.F. of
L. (Federação Operária Americana),
abriu-lhes as portas. Ao tempo, o Partido Comunista advogava um Estado à parte
para os Negros, dentro da União, ideia impopular, recentemente avivada por
certas organizações. A bola de neve (negra) cresceu, rolou. Os Negros já não
pediam, como no tempo de Harding: manifestavam-se, reclamavam, batiam-se.
Eisenhower em 1955, John F. Kennedy em 1961, reforçaram a igualdade industrial
do Negro. O Supremo Tribunal de Justiça decretou enfim a integração escolar.
Escolas superiores, como a Universidade da Cidade de Nova Iorque, dão-lhes
entrada gratuita. (Tem hoje cerca de 200 000 estudantes.) Há a igualdade do
salário nas profissões organizadas. O gueto transbordou, invade os próprios
subúrbios, dantes refúgio das classes desafogadas., Há ainda resistências,
evasivas, violências até, por parte de alguns sectores, mas já nada pode deter
a onda. No próprio Sul, baluarte do Apartheid, generaliza-se a integração
escolar, negros são eleitos. Os porto-riquenhos das cidades, dantes um grupo
rival, unem-se-lhes nas reivindicações. (Estes recém-chegados são ainda, em
alguns segmentos do Trabalho, mais bem pagos do que os negros nativos.) A
polícia, duma severidade proverbial mesmo na repressão dos estudantes brancos,
modera-se, procura evitar ensejos de violência. Há forças múltiplas trabalhando
para a solução pacífica e progressiva do problema. O negro vai perdendo o seu
sentimento de inferioridade. Vemos hoje nessas ruas as loiras nórdicas
passeando os frutos da sua livre união com homens de cor… A solução parece
estar, com efeito, na convivência, no amor, na intimidade – como o julgou ver
no Brasil o Prof. Wagley, sociólogo. O voto negro já pesa nas grandes e até nas
pequenas urbes. Os partidários da violência vão perdendo terreno…embora haja
quem espere ver sair a Revolução do seio das penitenciárias.
Decerto, é imenso
ainda o caminho a percorrer: o desemprego continua a ser, entre os negros, o
dobro do que se regista entre os brancos; muito maior a sua mortalidade
infantil, e menor a sua perspectiva de sobrevivência individual. A carência de
instrução e de costumes de trabalho circunscreve-os ainda às tarefas
inferiores. Mas haverá solução total, repentina, para quaisquer problemas? O
progresso tem sido tal, nestes cinquenta anos, que bem se pode falar de
«revolução». E que nação, etnicamente individualizada e consciente, aceitaria
sem temos essa presença perturbadora ? Porque se trata não só de uma questão
económica e social, ou mesmo racial, mas de uma confrontação de identidades, de
culturas, de ways of life , que põe em perigo o equilíbrio moral da nação. Só
quem o não tem em sua própria casa poderá falar de fáceis soluções. A
homogeneidade de uma nação de dimensões continentais e multirraciais nunca se
fez em dois tempos. Quando deixaremos nós de pensar por slogans, abstracções,
ideias feitas, narizes de cera, para encarar a realidade e pensar
objectivamente, pela nossa própria cabeça?
Pobre, esquecido Mr.
Harding! E que idade, que sonhos, que ilusões tínhamos nós há cinquenta anos?
Quantos desenganos desde então não sofremos!
[
Escrito a pedido do Diário de Lisboa para a comemoração do seu 50º aniversário.
Este jornal publicara no seu primeiro número, em 1921, um telegrama de
Washington dando a notícia do encontro de líderes negros com o Presidente
Harding. Este foi o meu comentário ]
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Este
texto consta no livro “O espelho
poliédrico” , das Obras Completas de José Rodrigues Miguéis, 2ª edição ,
Editorial Estampa. 1ª edição: Estúdios Cor, 1973.
José
Rodrigues Miguéis nasceu em Lisboa em 1901 e viveu muitos anos nos Estados
Unidos até à sua morte em 27 de Outubro de 1980.
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