Mário Faria
25 de Dezembro.
Tínhamos dormido rapidinho e nem por isso o almoço começou antes das duas da
tarde. Primeiro a sopa para as crianças e só depois o tradicional farrapo velho
(obrigatório), seguido de um prato de
carne. Este ano foi leitão. Depois as sobremesas tradicionais. Comeu-se bem e
bebeu-se melhor. Já passavam muitos minutos das 16 horas quando acabámos. Os mais pequenitos foram dormir e os da
terceira idade sentaram-se nos sofás, encostaram-se e dormitaram
ruidosamente.
Os jovens juntaram-se
a jogar as cartas (eleven), os mais velhos a sueca e as mulheres, como do costume, tratavam das
coisas, das crianças e de nós. Estava um dia bonito que anunciava um pôr de sol
a não perder. Saí e fui até à Foz. Estava um frio agradável e muita gente a passear, sob os raios de sol que aproveitavam os últimos momentos do dia para nos brindar
com um elegante crepúsculo, protegido por um tecido muito fino de névoa que delicadamente
protegia o sol sem o asfixiar,
resultando o alaranjado do ocaso menos agressivo, mais tímido e frio a cada minuto que passava. Os numerosos
surfistas e os imensos transeuntes
humanizavam o espectáculo, ali à nossa frente. Foi bonito de ver e bom
para desfrutar.
Estava a pensar que
deveria escrever sobre esta sensação inédita que tinha vivido no dia de Natal,
quando me tocaram com uma palmada forte no ombro e ouvi o vozeirão do Zé (da Frutaria)
a reclamar : “então, julguei que tinhas morrido, que se passa contigo?”. Lá lhe dei uma série de desculpas de catálogo
e ainda estava a enumerar as brutas tarefas que me cabem e que me roubam todo o
tempo, quando o Zé, interrompendo-me se pôs a desfiar todo o fel que trazia no
corpo e na alma. A troika, o governo, os deputados, a oposição, os sindicatos, os
políticos e esse bandido do Sócrates deveriam
ser todos presos : um bando de malandros, como repetidamente e de
formada exaltada acusava . Nem Passos Coelho, nem o nosso Presidente, Pinto da
Costa, que antes venerava se salvaram da sua condenação. Vítor Pereira, esse ia
direitinho para o Inferno, sem passagem pelo limbo.
Aquele tom não era do
Zé. Havia qualquer coisa que o homem estava a esconder. Não hesitei em
perguntar-lhe: “oh pá, deixa-te de cantigas, a mim não me enganas. O que te
magoa, de verdade?”. Ficou calado e meditabundo. Esperei, pacientemente. Farto
do silêncio que se instalou e quando me preparava para me despedir, começou a
falar: “ Estou a pensar separar-me da Marlene. A paixão acabou, o amor foi logo
a seguir, o sexo é ocasional e sem graça e a afectividade usa-se no exercício
do negócio, obrigatoriamente à frente dos Clientes. Neste processo de
desintegração não há culpados, apenas vítimas. Sem filhos e com a família que
me resta na parvónia, com as vendas em queda acelerada, sinto-me triste,
infeliz e sozinho, sem saber por onde ir ou para onde vou. Para já, vou para
casa porque não tenho coragem para tomar outro caminho”. Deu-me um abraço e
pediu-me para aparecer. Afastou-se rapidamente, entrou no carro e seguiu o seu
destino.
Andei mais um pouco a
matutar no que tinha ouvido. Falei comigo mesmo sobre a complexidade do ser
humano, conjecturei sobre o futuro, fiz diagnósticos, promessas, julguei, sentenciei, castiguei os
culpados e, finalmente mais aliviado e grato pelo próprio reconhecimento
da nobreza dos meus pensamentos e propósitos, resolvi que o melhor era mesmo voltar a casa,
para junto da família. E fi-lo em boa hora : já estavam sobressaltados com a
minha demora. A minha mãe foi a primeira a condenar-me pela fuga, sem aviso
prévio. Estava desesperada porque tinha um mal estar geral e questionava-me o
que havia de tomar. “Achas que posso tomar Ben-u-ron ?”. Respondi, perguntando : “lanchou alguma
coisa?”. “Não!”, respondeu-me secamente. “E tem fraqueza ?”, insisti. “Por acaso até tenho”, respondeu a minha mãe.
“Então o melhor é comer uma rabanada e verá como vai ficar mais composta”.
“Dizes, bem. É boa ideia. Venha de lá uma”. Em cheio, as queixas pararam.
Com os miúdos
cansados de tanta brincadeira, nós fartos de tanta fartura, acomodados na ideia que somos
solidários por vocação, ansiosos por fazer este Porto campeão e por recolher ao
vale dos lençóis, juntamo-nos novamente
à mesa para comer a canjinha para
aquecer o corpo e alma. Despedimo-nos na convicção que para o ano será
mais do mesmo. A tradição manter-se-á,
enquanto vivermos. Será ?
O Natal é muito
cansativo, mas não esquecerei o sol daquele fim do dia, nem o
frio suavemente agreste que o rendeu , naquele recanto da cidade cheio de um alegre
bulício, contrastante com o clima geral
deste Portugal exaurido e com muita gente á beira do desespero.
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