01/09/11
ALLEGRO MA NON TROPPO
Alcino Silva
Para começar
«A vida é uma coisa séria, muitas vezes trágica, às vezes cómica. Os Gregos da Idade Clássica respeitavam profundamente e cultivavam o sentido trágico da vida. Os Romanos, geralmente mais práticos, sem fazer da vida uma tragédia, consideravam-na uma coisa séria e, por conseguinte, das qualidades humanas apreciavam particularmente a gravitas e tinham em pouca conta a levitas.»(1)
A Associação Portuguesa de Seguradores (APS) enviou aos Sindicatos que representam os trabalhadores de seguros a sua proposta de revisão do Contrato Colectivo de Trabalho (CCT) encontrando-se a mesma muito afastada da coisa séria com que os romanos encaravam a vida, pelo que, só pode ser entendida, como um acto cómico com desenho trágico.
Carlo M. Cipolla, Professor de História Económica na Universidade de Pisa, há cerca de 30 anos escreveu dois ensaios a que deu o título de “Allegro ma non Troppo”. Num deles, debruçava-se sobre as leis fundamentais da estupidez humana. Escreveu Cipolla nesse ensaio que dessas leis, a primeira diz-nos que “cada um de nós subestima sempre e inevitavelmente o número de indivíduos estúpidos em circulação”. Na segunda lei, constatou que “a probabilidade de uma certa pessoa ser estúpida é independente de qualquer outra característica dessa mesma pessoa”). Por último e como regra de ouro, apresenta-nos a terceira lei, “uma pessoa estúpida é aquela que causa um dano a outra pessoa ou grupo de pessoas, sem que disso resulte alguma vantagem para si, ou podendo até vir a sofrer um prejuízo”(1).
Recorremos ao professor italiano para analisar, compreender e comentar a proposta da APS, porque a mesma é, na verdade e por muito que possa custar afirmá-lo, um acto de estupidez humana. Pese embora ainda existirem outras duas leis fundamentais para a caracterizar, os senhores que hoje dominam a APS, entendem que, colocando-se ao nível do comportamento de alguns dos industriais de calçado com a quarta classe é um acto de sabedoria, mas não é, e o futuro demonstrará o quanto a sua visão, de curto prazo, de insistência em métodos de exploração intensivos vai conduzir a um estrangulamento das empresas que crêem gerir com sapiência, mas na verdade, estão antes em plena sintonia com a terceira lei fundamental da estupidez humana.
Num esforço maior para compreender a razão de tão doutos senhores agirem desta forma socorremo-nos de novo das palavras de Cipolla. Explica-nos através de um parêntesis que “os indivíduos caracterizam-se por graus diferentes de propensão para a socialização. Há indivíduos para os quais qualquer contacto com outros indivíduos é uma dolorosa necessidade. Na outra extremidade do espectro, há indivíduos que não podem de todo viver sós, preferindo mesmo passar o seu tempo com pessoas que desdenham a terem de ficar sós.” Acrescenta que, “a moral da história é que cada um de nós tem uma espécie de conta-corrente com cada um dos outros. De qualquer acção, ou não acção, cada um de nós ganha ou perde e, ao mesmo tempo, determina um ganho ou uma perca para um outro qualquer. (…) Ao considerar a acção de Fulano e ao avaliar os ganhos ou as percas que Fulano obtém, deve levar-se em conta o sistema de valores de Fulano. Contudo, para determinar o ganho ou a perca de Beltrano é absolutamente indispensável ter por referência o sistema de valores de Beltrano e não o de Fulano. É frequente ignorar-se esta norma de fair Play e muitos sarilhos derivam precisamente do desrespeito deste princípio de comportamento civilizado”.
O que na verdade sempre esteve presente na acção dos senhores da APS foi a sua incapacidade voluntária de viverem civilizadamente numa comunidade de pessoas. Perseguem um sonho antigo que acreditam estar prestes a alcançar, algo que nem o fascismo lhes concedeu, de instalarem uma república de patrões e criados, na qual, os patrões determinam o quando, o como e o quê em relação aos criados e, acreditam que tal vivência será um acto de inteligência sua, mas não deixarão de estar sempre num desses princípios enunciados pelo economista que aqui nos segue de guia.
É difícil não seguir o pensamento de Carlo Cipolla face às suas palavras tão certeiras ao tempo em que vivemos. Alerta-nos para o facto de que “alguns estúpidos normalmente causam apenas percas limitadas, ao passo que outros conseguem causar danos assustadores não só a um ou dois indivíduos, mas a toda uma comunidade ou sociedade” e destaca entre os factores contributivos, a posição de poder e autoridade que o estúpido pode ocupar na sociedade. Termina deixando-nos um conselho: "Num país em declínio, a proporção de indivíduos estúpidos é sempre igual a ε. Todavia, na restante população nota-se, especialmente entre os indivíduos que estão no poder, uma alarmante proliferação de bandidos com uma alta proporção de estupidez (…) e, entre os que não estão no poder, um aumento igualmente alarmante do número de crédulos (…). Esta mudança na composição da população dos não estúpidos reforça inevitavelmente o poder destrutivo da fracção ε dos estúpidos e leva o país à ruína”.
Uma empresa é um lugar de convergência de diversos interesses, dois dos quais fundamentais para o seu funcionamento, a sua organização e a sua estabilidade. Por um lado, os patrões detêm a propriedade dos bens que permitem gerar riqueza, por outro lado, os trabalhadores detêm a capacidade de fazer gerar essa riqueza. Os contratos colectivos de trabalho, não são mais que um conjunto de normas e regulamentos onde se inserem os direitos e deveres de ambas as partes. Em lugares civilizados, o sistema funciona. Onde existem instâncias como a APS, cujos senhores, entendem que os direitos devem ser exercidos apenas pelos patrões e os deveres pelos trabalhadores, o sistema é antes de mais uma fonte de conflito. É sempre uma escolha entre a inteligência e a estupidez. Pode até acontecer que a fragilidade das organizações representativas dos trabalhadores, a existência de um Estado demissionário e dirigido por gente predadora e uma gula insaciável de quem manda, permita à APS levar a bom termo este acto de estupidez humana que encetou, mas se o tempo lhes permitir olhar o passado, certamente verão o quanto a sua vitória se assemelhará à de Pirro e o esfrangalhamento social das organizações que dirigem, não só os arrastará a eles como ao país.
(1) – Todas as citações foram retiradas do livro, “allegro ma non troppo”, Carlo M. Cipolla, Celta Editora, Oeiras, 1998
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UMA ESTATÍSTICA
Manuel Joaquim
A Economia do Trabalho ocupa-se do funcionamento do mercado de trabalho, de primordial importância em virtude de a remuneração do factor trabalho constituir mais de 50% do rendimento gerado anualmente pelas economias de mercado e ser a principal fonte de rendimento disponível das famílias com que financiam as suas despesas de consumo e poupança. O factor trabalho é constituído por pessoas concretas, pelo que as condições de trabalho e as características dos trabalhadores são determinantes no funcionamento do mercado de trabalho.
A Oferta de Trabalho, isto é, as pessoas decidem trabalhar condicionadas às suas necessidades directas e indirectas. A Procura de Trabalho, isto é, os empregadores empregam trabalhadores porque necessitam de trabalho para produzir bens e serviços para os vender aos consumidores.
Não querendo conhecer todos os elementos que influenciam e determinam o funcionamento do mercado de trabalho, é importante conhecer alguns indicadores de forma a precisar o seu significado para avaliar melhor as informações que chegam quase diariamente, através da comunicação social, designadamente sobre a evolução do desemprego.
Assim, o primeiro passo é conhecer como são classificados os indivíduos perante o mercado de trabalho. A População Total do país, é constituída pela População Activa e pela População Inactiva, esta constituída por idosos, (65 ou mais anos), menores de 15 anos de idade, estudantes, domésticos, inválidos e serviço militar obrigatório. A População Activa é constituída pela População Empregada e pela População Desempregada. A População Empregada é constituída pela população que tem idade igual ou superior a 15 anos e efectuou 1 hora ou mais de trabalho remunerado na semana de referência. A população desempregada tem idade igual ou superior a 15 anos, sem trabalho e disponível para trabalhar e que tenha feito diligências para encontrar trabalho nos 30 dias anteriores.
O segundo passo, é definir critérios para o cálculo dos indicadores não só para os interpretar com rigor mas também permitir comparações internacionais. Como exemplo, existem critérios diferentes em termos internacionais no cálculo da Taxa de Actividade.
Partindo da classificação dos indivíduos perante o mercado de trabalho, calcula-se a Taxa de Desemprego como sendo a razão entre População Desempregada e População Activa, vezes 100, exprimindo, em média, por cada 100 indivíduos activos quantos estão desempregados.
Ora as pessoas para serem consideradas na situação de desemprego têm de estar inscritas nos Centros de Emprego e mensalmente manifestar disponibilidade para trabalhar e comprovar documentalmente que procuram trabalho. Caso contrário, são excluídas dos ficheiros informáticos e não consideradas na situação de desemprego. Todas as pessoas inscritas nos Centros de Emprego obrigadas a frequentar cursos de formação também não são consideradas desempregadas.
É possível concluir que a Taxa de Desemprego, que é sempre objecto de muitos comentários políticos, é sempre inferior ao número real de desempregados.
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MUROS RELIGIOSOS (4) A Igreja Ortodoxa
Mário Martins
O mais antigo ícone conhecido do Cristo Pantocrátor (omnipotente) - Wikipédia |
“Não tenho que ditar leis, mas apenas que recordar o significado do amor”.
Patriarca Atenágoras (depois de ter lido a encíclica Humanae Vitae) *
Individualizada pela evolução própria do Oriente cristão, a Igreja Ortodoxa, tal como a Igreja Católica, está consciente da sua integral continuidade com a Igreja do primeiro milénio, a dos mártires, dos Padres e dos sete concílios ecuménicos. *
O cisma entre o Ocidente e o Oriente cristão é, afinal, um longo processo de afastamento que se concretiza entre os séculos XI e XII. Em 1054 fracassa uma tentativa de aproximação que redunda numa troca de anátemas entre um legado pontifício e um patriarca de Constantinopla. *
Ao lado de factores importantes mas hoje caducos, como o significado religioso do Império, os ortodoxos apresentam como causas duradouras e propriamente teológicas do cisma do Ocidente o papel do papa na Igreja e a teologia do Espírito Santo. *
Com a reforma gregoriana, o primado romano evoluiu para uma monarquia cada vez mais absoluta (processo que só terminaria em 1870) e afirmou-se como fonte de todo o poder, não apenas espiritual, mas também temporal. Quanto ao Oriente, permanece fiel a uma concepção conciliar da Igreja, no quadro de uma “sinfonia” com o Estado. *
A controvérsia acerca da “processão” do Espírito Santo gira em torno da fórmula do Filioque, porque o Ocidente, apesar de nenhum concílio ecuménico ter alguma vez examinado o problema, acrescentou à fórmula joânica, retomada pelo segundo concílio ecuménico, “o Espírito procede do Pai”, a expressão “e do Filho”, em latim Filioque. Para os ortodoxos, o Filioque compromete a “monarquia” do Pai; além disso, a dependência unilateral do Espírito relativamente ao Filho iria traduzir-se numa dependência análoga da liberdade profética segundo o Espírito relativamente à presença sacramental e hierárquica de Cristo. *
A Igreja Ortodoxa conservou o rito chamado bizantino, afinal organizado inicialmente no mosteiro palestiniano de São Sabbas. Junta textos que remontam aos primeiríssimos séculos do cristianismo e uma abundante hinografia. Os ciclos litúrgicos entrecruzam-se numa complexa sinfonia. Tudo é animado pelo ciclo pascal, tudo culmina na Páscoa, a “festa das festas”, na qual ressoa incessantemente este refrão: “Cristo ressuscitou dos mortos. Pela morte, venceu a morte. Aos que estão nas sepulturas deu a vida”. *
Uma beleza especial, que tem que ver com a “corporeidade espiritual” e com o simbolismo, pacifica e ilumina todas as faculdades através do canto, do ícone, da luz das lamparinas e dos círios, dos perfumes, de uma gestualidade de inclinações e prosternações. A transfiguração dos sentidos pela beleza que “suscita toda a comunhão” (…), a própria duração das celebrações, seguidas de pé na maioria das igrejas ortodoxas, provocam uma interiorização, despertam o “coração”. *
* “As grandes religiões do mundo”, Olivier Clément, Direcção de Jean Delumeau, 1993, Editorial Presença, 2002.
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A VIÚVA
António Mesquita
Execução de Marie Antoinette, em 16 de Outubro de 1793 |
“Se bem que uma parte da Assembleia pedisse a votação imediata, a proposta de Guillotin foi adiada. Remetida para o dia da discussão do Código Criminal, Guillotin reaparece na tribuna no 1º de Dezembro seguinte, na altura em que se abre o debate sobre o antigo sistema penal. Desta vez, propõe: ‘O criminoso será decapitado, e sê-lo-á por efeito dum simples mecanismo.’”
“La guillotine en 1793” (Hector Fleischmann)
A simplicidade do mecanismo, quase como a da lógica, venceu o espírito dos revolucionários, e a medida foi decretada em 21 de Janeiro de 1790.
Paradoxalmente, foi como um progresso assinalável e como uma lei mais justa que se adoptou a máquina do Dr. Guillotin. Com efeito, as execuções no anterior regime deixavam muito a desejar e podiam ir muito além do castigo que se pretendia infligir. O Dr. Louis, Secretário Perpétuo da Academia de Cirurgia, lamentava que alguns suplícios se tornassem horríveis para o paciente e para os espectadores, por defeito dos meios empregues na execução. Não era raro que, numa decapitação, a cabeça não ficasse, à primeira, separada do tronco e fossem necessários alguns golpes de sabre para acabar o trabalho.
Assistimos a uma espécie de asseptização da pena máxima. É nesse sentido que devemos interpretar a reivindicação dos carrascos junto do rei contra o costume de lhes chamarem… carrascos. Numa ordenança de 1787, o bom Luís XVI, dá-lhe provimento: “O rei é informado que acontece muitas vezes que os executores das sentenças em matéria criminal sejam, por erro, designados pelo nome de ‘carrascos’(…)”
Mais tarde, o célebre carrasco Sanson perseguiu alguns jornais culpados por terem concitado o opróbrio popular tratando-o por aquele nome infame. Matar alguém passou a ser um assunto administrativo, com direito ao bom nome, está bom de ver. Não é sem uma certeira intuição que o mesmo Sanson desabafa perante a “limpeza” da mais recente decapitação: “Bela invenção! Conquanto que não se abuse da facilidade!”
Sabemos como este funcionalismo macabro proliferou, fazendo cair cabeças com uma assinatura, prenunciando outras máquinas de extermínio em maior escala ainda.
Está visto que há algumas coisas que não devem ser tão simplificadas como alguns gostariam.
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