Um destes dias, máquina de filmar a tiracolo, fui enganar turistas para a Ribeira de Gaia. Entenda-se, eles não podiam imaginar que eu era nascido, criado e fundeado naquele Porto. Como na bela Toledo, é preciso atravessar o rio para fruir o quadro pictórico que é hoje património do mundo. Grande bulício, pessoas e carros para cá e para lá, constantes poses fotográficas, barcos cheios de gente para cima e para baixo, o rio e a luz só para baixo, a ponte de D. Luis, cheia de vida, sempre a meter-se pelos olhos dentro, um grupo de italianos pede-me para lhes tirar uma foto contra o recorte do casario fixo que Vasco Graça Moura1 descreve muito melhor do que eu poderia fazer:
visto da margem sul do rio o porto não explode
sob a tarde de verão. a água reflecte
renques de casario humilde a encastelar-se
irregular em ocres e granito, manchas, vãos, recatos.
…
além uma arcadas, um cais, o traço grosso a carvão
dos encaixes da ponte armada em ferro, a muralha,
o deslizar da luz para poente, tudo
uma dramática placidez escurecendo a ribeira...
Apenas acrescentarei, parafraseando outro poeta, Jorge de Sousa Braga2,
Com água no bico
aves marinhas combatem
o incêndio do crepúsculo
que o sol se preparava para incendiar o crepúsculo antes de ser tragado pelo mar da Foz. Antes, na Ribeira do Porto, tinha reencontrado o meu passado antigo de ir ver os meninos a mergulharem, intrépidos, no rio, agora, ainda mais intrépidos, a atirarem-se também, eles e elas, do tabuleiro inferior da ponte D. Luís, uns mesmo de cima do varandim, alguns a benzerem-se antes, encenando naturalmente um espectáculo que não custa dinheiro, para deleite dos turistas. Das coisas que fazem a identidade do Porto contam-se certamente as Escadas do Codeçal que vão a serpentear por ali acima desde a ponte de baixo, à beira do elevador dos Guindais, até ao Aljube e à Igreja de Santa Clara, no Largo 1º. de Dezembro, à Batalha. São umas escadas largas, com corrimão central em ferro e casas dos dois lados, logo na primeira curva estava uma moradora cá fora, sentada numa cadeira, a ler o jornal, mais adiante uma dona de casa esfregava roupa numa pia de lavar à sua porta, enquanto uma jovem, meia-dúzia de degraus acima, dependurava roupa a secar numa corda suspensa de um pau oblíquo, o filme espectacular da paisagem do rio e das pontes vai mudando à medida da subida ou descida das escadas, lá em cima passa-se mesmo debaixo do tabuleiro da ponte enquanto se espreita a muralha fernandina, outro poeta, Luís Veiga Leitão3, diz o que o velho burgo dá ao visitante:
Entrego-te as chaves da cidade
A chave da torre que do alto nos abre
O voo das aves e os pórticos do mar
A chave das muralhas do burgo antigo
Que nos abre os mistérios do rio
A chave viva dos arcos da ribeira
Na livre explosão das falas do povo
E a chave de cais, senhora zelando
Os tesouros do sol no ouro do vinho
1 Do poema VISTO DA MARGEM SUL DO RIO O PORTO
2 Do poema FOZ
3 Poema AO VISITANTE
PS: No meu artigo de Agosto escrevi “que o presidente e poeta do Senegal Léopold Senghor identificou (Lagos, no Algarve) com a sua Lagos, “Un jour à Lagos ouverte sur la mer comme l’autre Lagos”, mas seguramente que se queria referir a Lagos, na Nigéria.
1 comentário:
Lindo. Quando poderei ver eu esse filme, Sr. Poeta?
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