Bento XVI no Porto
1. "A Igreja nada impõe. Só propõe", afirmou o Papa no Porto. Não me lembro de ouvir da Igreja, há muito tempo, habituado ao discurso tantas vezes ambíguo e opaco, e sempre parabólico, nada de metodologicamente tão cristalino e tão conforme ao são princípio da separação entre estado e religião.
2. A Igreja não renunciou de livre vontade ao poder temporal do estado, devendo-se a sua retirada do governo dos assuntos de César à luta secular contra o poder do clero, geralmente exercido de forma despótica, e muitas vezes devassa e sangrenta, de que a Inquisição é o mais famoso mas não o único testemunho.
3. Pode imaginar-se o que seria hoje um governo da Igreja, considerando o modo como se organiza e alguns valores que defende. A Igreja Católica (como, de resto, a Muçulmana) é, evidentemente, uma igreja masculina, mau grado o crescente culto à Virgem. O movimento de emancipação feminina que atravessou o século XX ainda não passou do adro. O mito de Adão e Eva, entretanto, não cessa de alimentar uma visão oficial pecaminosa e, por isso, exclusivamente procriadora do sexo, daí a proibição do casamento para os padres e dos meios anticoncepcionais ou do casamento homossexual para os leigos.
4. O que arrasta, no entanto, as multidões atrás do Papa e o que dá força à Igreja (se apenas 19% da população portuguesa irá à missa dominical, 85% afirma-se católica)? Não, maioritariamente, a religião moral mas, sem dúvida, o mistério da existência e a angústia da morte. Todos percebemos, religiosos ou não, que a realidade é um dado que transcende o ser humano. Pessoalmente (eu que não sou um teísta e que prefiro a inquietação da filosofia ao sossego da religião) considero que a ideia de Deus, enquanto entidade (seja lá ela o que for) criadora e despida dos atributos religiosos, é uma necessidade lógica.
5. Como escrevi já nestas páginas, o universo (no sentido clássico de tudo o que existe, conhecido ou não) ou teve um início ou sempre existiu. Se teve um início, Deus é independente dele. Se é eterno (ou seja, auto-criado), Deus é a própria natureza. O Ateísmo, colocando-se na posição de negativo das religiões teístas, afirmando-se crente nas respostas científicas (as quais têm por objecto a descoberta das leis da natureza e não a sua origem), ou considerando que a metafísica é um tumor a extirpar, apenas desiste de pensar.
6. É justo reconhecer uma crescente preocupação social do discurso oficial da Igreja nos últimos anos. "Há uma componente moral nesta crise económica mundial. O positivismo económico, que pensa poder realizar-se sem a componente ética" e sem ter "o homem como preocupação central" foi o grande produtor de "problemas irresolúveis", diz o Papa. E os incitamentos à paz e à solução negociada dos conflitos tem sido uma constante.
7. A representação milenar do mistério da existência e da sublimação da morte pela(s) Igreja(s), com os seus mitos e rituais, a organização da religião, em suma, marca e demarca civilizações e culturas, é uma das mais ricas fontes das artes, e constitui um poderoso lenitivo psicológico e um sólido cimento de ligação social.
8. A Igreja Católica abdicou formalmente do poder do estado, enquanto as rivais Judaica e Muçulmana ainda se confundem com ele, embora em diferentes regimes. Todas, de qualquer modo, no estádio de "religião moral" e distantes do estádio de "religião cósmica" que o célebre físico Einstein considerava ser "o reconhecimento da harmonia racional da natureza".
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