Seres como Jack o Estripador nunca sairão da sua monstruosidade porque a lenda assim os fez, e é de crer que se um dia aparecesse o hipotético diário atormentado do serial killer mais famoso da história seria quase a contragosto que imaginaríamos alguma espécie de "reabilitação", à medida que o fôssemos compreendendo. O mais provável é que o Estripador tivesse tido uma vida dupla perfeitamente conseguida (nunca foi apanhado), e não faltam teorias que o ligam à aristocracia e até à casa real. Tudo isso favorece o poder de sugestão do mito.
Mas do que eu quero realmente falar é duma série da televisão sobre um serial killer dos nossos dias, que é uma personagem que procura identificar-se connosco, graças ao fenómeno da empatia e à narração na primeira pessoa. Estou a falar de "Dexter"(*), evidentemente. O serial killer encarnado por Michael Hall tem, como não podia deixar de ser, uma vida dupla sempre ameaçada de se fundir no exílio da humanidade. O espectador entra no jogo de psicanálise da pulsão assassina com o constante flashback dum passado traumático (ele assistiu ao assassínio da mãe) e da justificação do código de Dexter (as suas vítimas são exclusivamente criminosos que escaparam à justiça). Como dizia a mãe de Rita, a sua namorada, eles só tinham o que mereciam. A tradição moral do western com o herói solitário fazendo justiça pelas suas mãos num território sem lei nem ordem vem aqui entretecer-se nos outros temas. Esta mitologia do justiceiro tem um grande poder na sociedade americana, em que, apesar da crescente organização policial, a violência e o desenraizamento como que perpetuam, virtualmente, as condições da "conquista do oeste". Tudo isto faz com que o espectador seja seduzido pela personagem. A série explora habilmente essa ambiguidade. Numa época em que as doenças mentais ameaçam as fronteiras da "normalidade", a psicopatia de Dexter parece não ter nada a declarar. É só o que está a mais, em relação ao pistoleiro mais rápido que para conforto de todos está do lado certo. O seu lado negro deixa de ser absoluto. O ritual do assassínio ganha a qualidade dum procedimento técnico. Este jogo nos limiares da consciência ética é realmente perverso? Será este objecto, ao mesmo tempo, incómodo e fascinante, um ataque às nossas certezas e aos nossos valores?
Esta representação do mal, não o esqueçamos, é sempre uma representação e, como dizia Nietzsche:"O homem só exige a verdade e só se sente obrigado a ela no comércio de moralidade com os outros homens, e é o fundamento da vida em comum: previnem-se as consequências funestas das mútuas mentiras; pode-se em contrapartida permitir a mentira aos poetas: onde as mentiras são agradáveis, elas são permitidas." ("Philosophenbuch").
O que temos em "Dexter" é uma mentira agradável, e é em virtude dum pacto implícito com o espectador que podemos compreender o seu regime de verdade que nada tem a ver com o "comércio de moralidade com os outros homens."
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