01/06/10
NOTAS LAICAS
Bento XVI no Porto
1. "A Igreja nada impõe. Só propõe", afirmou o Papa no Porto. Não me lembro de ouvir da Igreja, há muito tempo, habituado ao discurso tantas vezes ambíguo e opaco, e sempre parabólico, nada de metodologicamente tão cristalino e tão conforme ao são princípio da separação entre estado e religião.
2. A Igreja não renunciou de livre vontade ao poder temporal do estado, devendo-se a sua retirada do governo dos assuntos de César à luta secular contra o poder do clero, geralmente exercido de forma despótica, e muitas vezes devassa e sangrenta, de que a Inquisição é o mais famoso mas não o único testemunho.
3. Pode imaginar-se o que seria hoje um governo da Igreja, considerando o modo como se organiza e alguns valores que defende. A Igreja Católica (como, de resto, a Muçulmana) é, evidentemente, uma igreja masculina, mau grado o crescente culto à Virgem. O movimento de emancipação feminina que atravessou o século XX ainda não passou do adro. O mito de Adão e Eva, entretanto, não cessa de alimentar uma visão oficial pecaminosa e, por isso, exclusivamente procriadora do sexo, daí a proibição do casamento para os padres e dos meios anticoncepcionais ou do casamento homossexual para os leigos.
4. O que arrasta, no entanto, as multidões atrás do Papa e o que dá força à Igreja (se apenas 19% da população portuguesa irá à missa dominical, 85% afirma-se católica)? Não, maioritariamente, a religião moral mas, sem dúvida, o mistério da existência e a angústia da morte. Todos percebemos, religiosos ou não, que a realidade é um dado que transcende o ser humano. Pessoalmente (eu que não sou um teísta e que prefiro a inquietação da filosofia ao sossego da religião) considero que a ideia de Deus, enquanto entidade (seja lá ela o que for) criadora e despida dos atributos religiosos, é uma necessidade lógica.
5. Como escrevi já nestas páginas, o universo (no sentido clássico de tudo o que existe, conhecido ou não) ou teve um início ou sempre existiu. Se teve um início, Deus é independente dele. Se é eterno (ou seja, auto-criado), Deus é a própria natureza. O Ateísmo, colocando-se na posição de negativo das religiões teístas, afirmando-se crente nas respostas científicas (as quais têm por objecto a descoberta das leis da natureza e não a sua origem), ou considerando que a metafísica é um tumor a extirpar, apenas desiste de pensar.
6. É justo reconhecer uma crescente preocupação social do discurso oficial da Igreja nos últimos anos. "Há uma componente moral nesta crise económica mundial. O positivismo económico, que pensa poder realizar-se sem a componente ética" e sem ter "o homem como preocupação central" foi o grande produtor de "problemas irresolúveis", diz o Papa. E os incitamentos à paz e à solução negociada dos conflitos tem sido uma constante.
7. A representação milenar do mistério da existência e da sublimação da morte pela(s) Igreja(s), com os seus mitos e rituais, a organização da religião, em suma, marca e demarca civilizações e culturas, é uma das mais ricas fontes das artes, e constitui um poderoso lenitivo psicológico e um sólido cimento de ligação social.
8. A Igreja Católica abdicou formalmente do poder do estado, enquanto as rivais Judaica e Muçulmana ainda se confundem com ele, embora em diferentes regimes. Todas, de qualquer modo, no estádio de "religião moral" e distantes do estádio de "religião cósmica" que o célebre físico Einstein considerava ser "o reconhecimento da harmonia racional da natureza".
O PACTO COM O ESPECTADOR
Seres como Jack o Estripador nunca sairão da sua monstruosidade porque a lenda assim os fez, e é de crer que se um dia aparecesse o hipotético diário atormentado do serial killer mais famoso da história seria quase a contragosto que imaginaríamos alguma espécie de "reabilitação", à medida que o fôssemos compreendendo. O mais provável é que o Estripador tivesse tido uma vida dupla perfeitamente conseguida (nunca foi apanhado), e não faltam teorias que o ligam à aristocracia e até à casa real. Tudo isso favorece o poder de sugestão do mito.
Mas do que eu quero realmente falar é duma série da televisão sobre um serial killer dos nossos dias, que é uma personagem que procura identificar-se connosco, graças ao fenómeno da empatia e à narração na primeira pessoa. Estou a falar de "Dexter"(*), evidentemente. O serial killer encarnado por Michael Hall tem, como não podia deixar de ser, uma vida dupla sempre ameaçada de se fundir no exílio da humanidade. O espectador entra no jogo de psicanálise da pulsão assassina com o constante flashback dum passado traumático (ele assistiu ao assassínio da mãe) e da justificação do código de Dexter (as suas vítimas são exclusivamente criminosos que escaparam à justiça). Como dizia a mãe de Rita, a sua namorada, eles só tinham o que mereciam. A tradição moral do western com o herói solitário fazendo justiça pelas suas mãos num território sem lei nem ordem vem aqui entretecer-se nos outros temas. Esta mitologia do justiceiro tem um grande poder na sociedade americana, em que, apesar da crescente organização policial, a violência e o desenraizamento como que perpetuam, virtualmente, as condições da "conquista do oeste". Tudo isto faz com que o espectador seja seduzido pela personagem. A série explora habilmente essa ambiguidade. Numa época em que as doenças mentais ameaçam as fronteiras da "normalidade", a psicopatia de Dexter parece não ter nada a declarar. É só o que está a mais, em relação ao pistoleiro mais rápido que para conforto de todos está do lado certo. O seu lado negro deixa de ser absoluto. O ritual do assassínio ganha a qualidade dum procedimento técnico. Este jogo nos limiares da consciência ética é realmente perverso? Será este objecto, ao mesmo tempo, incómodo e fascinante, um ataque às nossas certezas e aos nossos valores?
Esta representação do mal, não o esqueçamos, é sempre uma representação e, como dizia Nietzsche:"O homem só exige a verdade e só se sente obrigado a ela no comércio de moralidade com os outros homens, e é o fundamento da vida em comum: previnem-se as consequências funestas das mútuas mentiras; pode-se em contrapartida permitir a mentira aos poetas: onde as mentiras são agradáveis, elas são permitidas." ("Philosophenbuch").
O que temos em "Dexter" é uma mentira agradável, e é em virtude dum pacto implícito com o espectador que podemos compreender o seu regime de verdade que nada tem a ver com o "comércio de moralidade com os outros homens."
PEÇAM TUDO…
As cores da manhã distendiam-se com leveza perante o êxtase do nosso olhar, perdido entre o céu e a terra. Ao longe, muito ao longe e num plano cada vez mais inferior a pequena aldeia tornava-se a todo o instante diminuta e os sons soltavam-se longínquos como espalhados ao sabor da manhã, chegando nesse rumor de algo que acontece sem percebermos onde. O verde dominava a vastidão da paisagem. Não um verde único, pois o que não se repete, não se multiplica, não se desdobra, não alcança o mesmo efeito da diversidade. Eram muitos verdes que se espalhavam por esse espaço aberto ou escondido das encostas montanhosas da serra. Quando o horizonte encontrou os olhares, percebeu-se esse momento irrepetível da grandeza da natureza. Entre a luminosidade do azul do universo e o das águas e o verde que atapetava o chão, uma brisa de vento correu, como uma espátula espalhando as cores numa pintura singular de encanto e fantasia. Esse ligeiro soprar do ar a arrefecer o calor fez voar o pensamento pelos tempos olvidados da história.
Os ventos da tarde rodopiam cansados sobre as terras poeirentas do sul da Pérsia e arrastam consigo o que resta do império Aqueménida. Os seus poderosos reis afundam-se no incêndio de Persépolis. O fausto real erguido em séculos de pompa e conquista naufraga perante Alexandre e os seus exércitos. O poderio persa esmagado e destruído perante o civilizado macedónio. Não mais, a história, a nossa, abandonará essa construção, dos europeus, sábios, civilizados, grandes e poderosos, em contraposição aos que apagaram, aniquilaram, esconderam nos escombros da história. Interrogamo-nos até onde teria chegado este general caso a morte não o surpreendesse e, recordamos a sua inteligência, a sua estratégia, a sua capacidade militar, o império que semeou em terras da Ásia e, ainda, Alexandria, essa mítica cidade mediterrânica que fundou. Sobre as ruínas fumegantes de Tebas e Persépolis também passou Alexandre o conquistador e da morte dos seus povos, olhamos com a nossa complacência, como um facto necessário, sem alternativa, compreensivo até. A destruição em nome da civilização, sempre da nossa, porque única, aparece até como um acto ressurreccional.
Dez séculos depois, outros homens, menos inteligentes, mas também europeus e civilizados, sobretudo aventureiros sem escrúpulos, desembarcam nas costas sul-americanas e farejam ouro na cordilheira andina. A diferença dos estádios civilizacionais visível na técnica dos utensílios militares vai provocar uma hecatombe das civilizações que encontraram, a qual se transformará num dos maiores genocídios da história, documentada por alguns dos personagens que o viveram. Hoje, utilizando métodos que a ciência disponibiliza, tenta-se inverter os factos, atribuindo-se aos autóctones a sua própria destruição e, ilibando-se ou diminuindo o peso da responsabilidade criminosa do castelhano Pizarro, Francisco de seu nome, e dos homens que comandava, iludindo-se que a Europa enriqueceu nesses séculos, mamando das riquezas espoliadas aos povos que foram passados a fio de espada, os quais aparecem aqui e ali, representados como figurantes primários em confronto com esse branco e civilizado continente europeu.
Quinhentos anos passados, uma matilha de especuladores financeiros, mandadores sem lei num mundo por si concebido à justa medida dos seus interesses, espolia os povos e os Estados até ao esgotamento e quando se aguardava, ou seria legítimo aguardar, que fossem aprisionados e expelidos como um vulgar excremento, chegam-nos discursos recomendando compreensão e bom senso, o que traduzido em linguagem corrente, significa, servilismo e cobardia. Milénios de esbulho e desmandos, de tulhas fartas, de crimes e genocídios, a mesma civilização de Alexandre e Pizarro, pedem-nos para nos auto-acorrentarmos como cativos e frouxos, reservando a dignidade para esse canto onde repousam os objectos inúteis que um dia o acaso nos fez encontrar
Centenas de séculos de história percorridos e repetem-nos o discurso da cobardia, do amansamento das ideias e dos actos, enquanto os alforges engravidam de riqueza até transbordarem como uma baba formada sobre a vida daqueles a quem destinam apenas o lugar onde assenta o pavimento por onde correm os carros de todos os Alexandres e Pizarros que a história pariu.
O olhar recupera de novo o domínio da paisagem enquanto segue o voo planado da ave que desafia as alturas. A pedra dura que o tempo não venceu, mantém intactas as formações graníticas desenhadas no nascimento do planeta. A mão humana esboçou o imenso lago que se estende ao longe, nessa captura de água geradora de energia. A brisa arrasta cânticos suaves e profundos e voltamos a sentir as terras poeirentas tapando lentamente a grandeza de Persépolis e, baixo e lento, um som penetra-nos o pensamento. Só temos nas mãos, palavras, escritas, faladas, ditas e com elas construímos a vida. Peçam tudo, ou quase, mas não peçam às palavras para serem servis e cobardes, mesmo disfarçadas metaforicamente como bom senso e compreensão. Recordando as palavras cantadas de Luís Cilia, «recuso-me ao silêncio e à mordaça/ e embora, a minha voz de nada valha/ que me fique ao menos a consciência/ de que tentei romper esta muralha».